A pergunta que dá título ao texto poderia ser de mera retórica: eu entendo que a fotografia é uma arte. E ficaríamos por aqui; em lugar de uma pergunta teria posto uma afirmação e não precisaria de escrever nem mais uma linha.
A questão, contudo, não é simples. Todas as artes se democratizaram e vulgarizaram. Hoje em dia toda a gente pinta, escreve e faz música. Vivemos numa sociedade em que, nas palavras também elas tão banalizadas de Andy Warhol, toda a gente tem os seus quinze minutos de fama. Margarida Rebelo Pinto e Paulo Coelho são considerados escritores, Rebecca Black e Justin Bieber são reputados como músicos e os sujeitos que vão para a Rua de Santa Catarina vender os seus quadros patéticos são por vezes referidos como pintores.
Com a fotografia, porém, a banalização vai muito mais longe. Hoje toda a gente tira fotografias, seja com um telemóvel ou com uma Nikon D7000. A fotografia está presente em praticamente todos os aspectos que nos rodeiam, desde a publicidade até às redes sociais. Houve uma indústria poderosa que se desenvolveu em torno da fotografia e que levou a um consumismo a que já me referi aqui, com a particularidade perversa de fazer evoluir os produtos de maneira a simplificar a sua operação, garantindo ao adquirente a sensação ilusória de ser capaz de fotografias belíssimas sem qualquer esforço. Tal como qualquer novo pintor ou escritor, também o fotógrafo com pretensões artísticas tem de superar o embotamento e o cepticismo dos críticos para merecer o estatuto de artista.
Vejamos, antes de mais, o que se entende por arte. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora define-a como a «actividade de criação de coisas belas», o que é parcialmente certo (se assimilarmos arte e estética, o que é redutor), mas demasiado ambíguo e impreciso. Não basta que algo seja belo para que se possa considerar arte. Com efeito, a arte é algo mais que criar coisas belas: é também a intenção do artista, que através da sua criação procura transmitir uma mensagem, provocar emoções ou sensações ou desafiar a inteligência de quem percebe (percepciona) o objecto por ele criado. Torna-se difícil, perante estas proposições, encontrar fotógrafos e fotografias que preencham o conceito de arte. A maioria das fotografias com que nos deparamos no nosso quotidiano produz algo diferente: o impacto, uma sensação momentânea destinada a que o nosso cérebro produza determinadas associações.
Ora, para que possa ter um significado junto de quem a frui, a arte carece de produzir sensações duradouras, agindo sobre o intelecto do sujeito de uma maneira significativa; a criação carece de ter um sentido - ainda que meramente de fruição estética - para que seja artística. Penso que o último reduto, a fronteira entre arte e outras formas de comunicação, se encontra na intenção do criador e na forma como o sujeito percebe o objecto artístico. Por outras palavras, na relação trilateral que se estabelece entre sujeito, objecto e o criador deste último. Por vezes, porém, torna-se difícil estabelecer diferenças quando a arte se vulgariza e é usada com fins diversos da percepção intelectual a que aludi. A publicidade é um exemplo: o mesmo objecto pode ser percebido como uma criação artística ou como algo comezinho e meramente funcional. Uma fotografia de uma mulher semi-nua pode ser uma criação artística, se foi essa a intenção do fotógrafo e for assim que o sujeito que a observa a percebe, mas o mesmo não se poderá inferir se a mesma mulher surge num anúncio de roupa interior, porque aqui há uma funcionalidade que, se é certo que causa uma sensação junto do observador, é dirigida a um fim instrumental bem mais óbvio e de menor significado que a fruição de um objecto artístico - a criação de uma associação entre o prazer e um determinado objecto.
Por outro lado, para haver criação artística é também necessário o domínio da técnica - uma aptidão para transmitir ao sujeito o significado que o criador quis comunicar com a sua obra. A forma é importante na arte: no caso da fotografia, como em todas as outras formas de expressão artística, há quem entenda que as regras técnicas existem para ser transgredidas - mas, para que essa transgressão tenha conteúdo, é necessário que seja precedida pelo domínio das técnicas. Uma vez deram-me a ler uma brochura (hesito em chamar-lhe «livro») de uma jovem pretendente a escritora: abandonei a leitura quando me apercebi que a moçoila abusava da expressão «ter que», usando que como uma proposição. Uma pessoa que não domina a gramática não pode ser reputada como escritora. Por que não há-de o mesmo ser aplicável à fotografia? Uma fotografia em que o objecto surge no extremo da imagem só pode ser valorada enquanto criação artística se a esse enquadramento tiver presidido uma intenção. Caso contrário - e tal como acontece com a inobservância das regras gramaticais na literatura - estaremos perante uma mera exibição de ignorância de regras essenciais de composição e enquadramento. Pablo Picasso e Wassily Kandinsky transgrediram as regras da proporção e da harmonia, mas antes de o fazerem percorreram um caminho que os levou à aquisição de conhecimentos sólidos de pintura e ao domínio das suas técnicas tradicionais; só depois de adquiridos esses conhecimentos puderam ultrapassá-los e criar novas linguagens.
Temos, deste modo, que conteúdo e forma se unem e são incindíveis, enformando ambos o conceito de arte a ponto de esta não existir quando falha um daqueles. A técnica sem conteúdo é um vazio que nada significa para o sujeito; o conteúdo sem técnica indicia falta de conhecimento das regras da arte. Os fotógrafos que enunciei nos textos acerca das minhas referências caracterizam-se por serem artistas: as suas criações têm um significado intemporal e as impressões produzidas no sujeito que as observa são conduzidas ao intelecto através da técnica. Não tenho, perante tudo isto, quaisquer dúvidas em considerar que a fotografia é uma arte. A sua banalização não lhe rouba esse estatuto; pretender o contrário seria admitir que aquilo que Beethoven compôs não é arte porque existe o David Fonseca, ou que Eça de Queiroz não é um grande escritor por causa de Margarida Rebelo Pinto. As fotografias de Cartier-Bresson e Ansel Adams hão-de sobreviver àqueles patetinhas que vemos todos os dias segurando uma compacta na ponta dos dedos, com os bracinhos esticados e um sorriso lorpa na cara enquanto fotografam monumentos que já toda a gente viu.
Vejamos, antes de mais, o que se entende por arte. O Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora define-a como a «actividade de criação de coisas belas», o que é parcialmente certo (se assimilarmos arte e estética, o que é redutor), mas demasiado ambíguo e impreciso. Não basta que algo seja belo para que se possa considerar arte. Com efeito, a arte é algo mais que criar coisas belas: é também a intenção do artista, que através da sua criação procura transmitir uma mensagem, provocar emoções ou sensações ou desafiar a inteligência de quem percebe (percepciona) o objecto por ele criado. Torna-se difícil, perante estas proposições, encontrar fotógrafos e fotografias que preencham o conceito de arte. A maioria das fotografias com que nos deparamos no nosso quotidiano produz algo diferente: o impacto, uma sensação momentânea destinada a que o nosso cérebro produza determinadas associações.
Ora, para que possa ter um significado junto de quem a frui, a arte carece de produzir sensações duradouras, agindo sobre o intelecto do sujeito de uma maneira significativa; a criação carece de ter um sentido - ainda que meramente de fruição estética - para que seja artística. Penso que o último reduto, a fronteira entre arte e outras formas de comunicação, se encontra na intenção do criador e na forma como o sujeito percebe o objecto artístico. Por outras palavras, na relação trilateral que se estabelece entre sujeito, objecto e o criador deste último. Por vezes, porém, torna-se difícil estabelecer diferenças quando a arte se vulgariza e é usada com fins diversos da percepção intelectual a que aludi. A publicidade é um exemplo: o mesmo objecto pode ser percebido como uma criação artística ou como algo comezinho e meramente funcional. Uma fotografia de uma mulher semi-nua pode ser uma criação artística, se foi essa a intenção do fotógrafo e for assim que o sujeito que a observa a percebe, mas o mesmo não se poderá inferir se a mesma mulher surge num anúncio de roupa interior, porque aqui há uma funcionalidade que, se é certo que causa uma sensação junto do observador, é dirigida a um fim instrumental bem mais óbvio e de menor significado que a fruição de um objecto artístico - a criação de uma associação entre o prazer e um determinado objecto.
Por outro lado, para haver criação artística é também necessário o domínio da técnica - uma aptidão para transmitir ao sujeito o significado que o criador quis comunicar com a sua obra. A forma é importante na arte: no caso da fotografia, como em todas as outras formas de expressão artística, há quem entenda que as regras técnicas existem para ser transgredidas - mas, para que essa transgressão tenha conteúdo, é necessário que seja precedida pelo domínio das técnicas. Uma vez deram-me a ler uma brochura (hesito em chamar-lhe «livro») de uma jovem pretendente a escritora: abandonei a leitura quando me apercebi que a moçoila abusava da expressão «ter que», usando que como uma proposição. Uma pessoa que não domina a gramática não pode ser reputada como escritora. Por que não há-de o mesmo ser aplicável à fotografia? Uma fotografia em que o objecto surge no extremo da imagem só pode ser valorada enquanto criação artística se a esse enquadramento tiver presidido uma intenção. Caso contrário - e tal como acontece com a inobservância das regras gramaticais na literatura - estaremos perante uma mera exibição de ignorância de regras essenciais de composição e enquadramento. Pablo Picasso e Wassily Kandinsky transgrediram as regras da proporção e da harmonia, mas antes de o fazerem percorreram um caminho que os levou à aquisição de conhecimentos sólidos de pintura e ao domínio das suas técnicas tradicionais; só depois de adquiridos esses conhecimentos puderam ultrapassá-los e criar novas linguagens.
Temos, deste modo, que conteúdo e forma se unem e são incindíveis, enformando ambos o conceito de arte a ponto de esta não existir quando falha um daqueles. A técnica sem conteúdo é um vazio que nada significa para o sujeito; o conteúdo sem técnica indicia falta de conhecimento das regras da arte. Os fotógrafos que enunciei nos textos acerca das minhas referências caracterizam-se por serem artistas: as suas criações têm um significado intemporal e as impressões produzidas no sujeito que as observa são conduzidas ao intelecto através da técnica. Não tenho, perante tudo isto, quaisquer dúvidas em considerar que a fotografia é uma arte. A sua banalização não lhe rouba esse estatuto; pretender o contrário seria admitir que aquilo que Beethoven compôs não é arte porque existe o David Fonseca, ou que Eça de Queiroz não é um grande escritor por causa de Margarida Rebelo Pinto. As fotografias de Cartier-Bresson e Ansel Adams hão-de sobreviver àqueles patetinhas que vemos todos os dias segurando uma compacta na ponta dos dedos, com os bracinhos esticados e um sorriso lorpa na cara enquanto fotografam monumentos que já toda a gente viu.
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