sábado, 6 de agosto de 2011

Corpos

Só agora, muito depois de ter escrito textos sobre lentes, senti o impulso de escrever sobre as máquinas fotográficas propriamente ditas, normalmente denominadas «corpos». (Uma câmara é o conjunto corpo-lente, quer ambos sejam independentes ou incorporados.) E só agora o faço porque, para o fotógrafo experiente, os corpos são a parte menos importante do conjunto que é a câmara. Com efeito - e admito que esta informação pode parecer estranha a muitos não-iniciados -, as lentes são mais duradouras e o fotógrafo tende a adquirir o seu material (corpos incluídos) em torno do conjunto de lentes que possui. Enquanto hoje em dia uma lente dos anos 70 ou 80 pode estar perfeitamente operacional, os corpos estão mais sujeitos ao desgaste e expostos a avarias - o que é ainda mais acentuado com as câmaras digitais.
As câmaras podem ser divididas em três grandes grupos: as compactas, as reflex ou DSLR e as compactas de lentes amovíveis. Fora desta divisão ficam as câmaras rangefinder, como as Leica da venerável série M, que se caracterizam por incorporar um visor óptico lateral: são demasiado grandes para poderem ser consideradas compactas e faltam-lhes as características ópticas e mecânicas das DSLR. Também extravasam destas categorias as câmaras de formato médio (Mamiya, Leaf, Hasselblad e a Pentax 645, por exemplo), uma vez que, embora funcionem segundo o mesmo sistema das DSLR, são câmaras destinadas a um uso estritamente profissional e não são transportáveis, atentas as suas dimensões verdadeiramente mastodônticas.
Canon Ixus, um clássico entre as compactas
As câmaras compactas são estranhas ao conceito de corpo, uma vez que este e a lente formam um conjunto inalterável. Logo aqui começam as suas limitações, uma vez que não há maneira de superar as deficiências de uma lente que, propondo-se fazer tudo, faz quase tudo mal. De resto, não tenho paciência para um tipo de câmara que pouco ou nada serve a criatividade do fotógrafo. Quando muito, dá jeito para andar no bolso, mas bem cedo este benefício se torna secundário perante a falta evidente de qualidade da imagem.
Exemplo de uma DSLR contemporânea. O rectângulo branco
no interior é o espelho, atrás do qual se encontra o sensor
As reflex, ou DSLR (Digital Single Lens Reflex), denominam-se assim por a luz que entra pela lente ser desviada, no corpo, por um espelho, que a orienta para um pentaprisma e daí para o visor óptico (ver esquema aqui). A captação da luz pelo sensor dá-se quando o espelho é levantado e o obturador aberto. Note-se que esta tecnologia não surgiu com a fotografia digital: ela foi criada em plena era analógica, sendo nessa época as câmaras construídas com esta tecnologia denominadas SLR (Single Lens Reflex). Um bom exemplo de uma câmara analógica reflex é a Olympus OM-1, cujas dimensões reduzidas constituíram uma autêntica revolução naqueles dias, influenciando decisivamente o design dos corpos.
Linda, não é?
As reflex são um excelente compromisso entre qualidade de imagem e transportabilidade. Os seus sensores permitem um bom desempenho em virtualmente todas as condições de luminosidade e são suficientemente sólidas para ser usadas em condições difíceis, como desportos ou aventura. De resto, a sua aceitação pública teve por consequência o fabrico e comercialização de um número quase infinito de lentes, pelo que é sempre possível encontrar no mercado a lente mais adequada para uma necessidade específica do fotógrafo. A despeito das suas inegáveis vantagens - a que acresce uma focagem bem mais rápida e precisa que a das câmaras compactas -, os modelos mais sofisticados são demasiado grandes e pesados para poderem ser considerados verdadeiramente práticos. Muitos fotógrafos sentiram necessidade de equipamentos mais compactos, embora com uma qualidade de imagem equivalente, e o Século XXI trouxe algumas evoluções importantes nesse sentido.
Em 2002, a Olympus e a Panasonic tentaram desenvolver uma tecnologia que permitisse o fabrico de lentes e câmaras de dimensões mais reduzidas que o padrão comum das DSLR; através de um sensor de dimensões ligeiramente menores que os APS-C e APS-H empregues pela Canon e Nikon, conseguiram conceber baionetas de menor diâmetro e, consequentemente, lentes mais pequenas. Este padrão, concebido como uma plataforma aberta (i. e. não patenteado) é o sistema Quatro Terços (por referência às dimensões do sensor). Ainda permanecia, porém, um obstáculo físico à concepção de câmaras e lentes verdadeiramente diminutas - o espelho e o pentaprisma. Com efeito, as câmaras do sistema 4/3 são verdadeiras DSLRs, que utilizam espelho, pentaprisma e focagem automática por detecção de fase. Esta dificuldade física foi removida empregando tecnologias de captação de luz e de focagem automática típicas das câmaras compactas em corpos que permitiam a montagem de lentes adquiridas em separado, com a vantagem de, dada a diminuição do diâmetro da baioneta, as lentes serem ainda mais compactas (embora o sensor seja das mesmas dimensões que os 4/3). Estava criado o sistema Micro Quatro Terços.
Olympus E-P1, a primeira câmara Micro 4/3 da Olympus
Em 2008, foi lançada a Panasonic GH1, a primeira câmara do sistema Micro 4/3; o corpo, porém, pouco diferia do de uma DSLR, pelo que as vantagens do novo sistema, que elimina o espelho e o pentaprisma captando a luz numa forma de exposição contínua (à semelhança das compactas), eram pouco evidentes. Os benefícios pretendidos com o Micro 4/3 - grande qualidade de imagem com um corpo e lentes de dimensões reduzidas - só foram plenamente alcançados depois do lançamento da Olympus Pen E-P1. As câmaras Micro 4/3, porém, possuem diversas desvantagens em relação às DSLR: o uso de sensores mais pequenos implica uma redução do desempenho em condições de pouca luminosidade e em fotografia nocturna, a oferta de lentes é ainda escassa, as câmaras não podem ser equipadas com visores ópticos de funcionamento semelhante aos das DSLR, pressupondo um modo de visualização permanente que obriga ao uso do ecrã para compor a imagem (ou, em alternativa, de um visor electrónico), a opção por corpos cada vez mais pequenos implica que tenham de ser adquiridos visores e flashes externos e, por fim, não existe um padrão universal, ou pelo menos dominante, que oriente a concepção e o desenvolvimento destas tecnologias, seguindo cada marca um caminho diferente. (A outra grande desvantagem - a lentidão da focagem automática, resultado do emprego da detecção de contraste em lugar da detecção de fase das DSLR - parece ter sido superada com o lançamento das câmaras Micro Quatro Terços mais recentes.)
Sony Alpha NEX-5, com sensor APS-C e dimensões grotescas
Para além do sistema Micro Quatro Terços, outras marcas lançaram corpos compactos com possibilidade de montagem de lentes adquiridas em separado: a Sony respondeu com as NEX, a Samsung com as NX e, mais recentemente, a Pentax lançou a Q. A diversidade de opções - que vão desde a montagem de um sensor APS-C nas Sony até ao sensor de câmara compacta da Pentax - tem obstado ao estabelecimento de uma tecnologia verdadeiramente universal, pelo que, ao tempo em que escrevo, se torna difícil prever se algum destes conceitos poderá singrar. Com efeito, cada marca parece seguir um caminho diferente das outras, pelo que só muito dificilmente surgirá daqui uma tecnologia capaz de superar a aceitação pública do reflex
O que parece certo é que nenhuma destas câmaras de objectivas amovíveis parece em condições de rivalizar com as reflex no que concerne à qualidade de imagem e versatilidade, e estas vão continuar a dominar o mercado enquanto não houver parâmetros tecnológicos adoptados universalmente, como os que permitiram o desenvolvimento da tecnologia reflex há mais de quarenta anos. Os CEO da Canon e da Nikon podem dormir descansados...

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