sábado, 20 de agosto de 2011

Edição de imagem, parte 1

No meu escritório há uma rapariga que é fotógrafa. Não é uma estrita amadora como eu: faz fotografia a um nível profissional, particularmente de casamentos e baptizados. A L. é uma grande fotógrafa: as imagens que brotam da sua Canon 7D são perfeitas. E é uma tecnicista: trabalha sempre no modo M, domina o flash e o equilíbrio de brancos e o género de fotografia a que se dedica obriga-a a uma enorme rapidez, atenção e sentido de oportunidade. Não é surpresa nenhuma que passemos algum tempo - tanto quanto o trabalho intenso nos permite - a conversar sobre fotografia, embora as nossas abordagens sejam quase antagónicas.
Um dos nossos primeiros tópicos de conversa foi a edição de imagem. A L. usa-a com frequência, mas apenas, assevera-me ela, para retocar fotografias. Há sempre um tom de pele que sai com a tonalidade errada por causa do flash, uma erupção cutânea inapropriada, etc. Entra em cena o Photoshop. Noutra conversa, ela disse-me algo que já sabia: «Aquelas imagens muito contrastadas, muito bonitas, muito vivas, que vê na Internet...? É tudo Photoshop. Nenhuma máquina tira fotos assim!»
Na verdade não é só o Photoshop. É também a técnica HDRI (*). Hoje toda a gente exagera no processamento da imagem. De uma fotografia fazem algo mais parecido com uma pintura - mas estas pseudo-pinturas têm mais que ver com os pastiches que se vendem na Rua Sampaio Bruno que com Vermeer ou Rembrandt. Está lá tudo o que é mau gosto, desde os contrastes excessivos e as matizes exageradas até às estrelinhas com muitos raios. Claro que há quem use a pós-produção com bom gosto, mas o mais habitual é aparecerem fotografias que evocam imediatamente aquelas aguarelas fatelas que se vendem na rua. É um dos males da democratização da fotografia e dos torrents de programas na Internet...
Imagem de Pawel Kazinsky, pubicada em www.facebook.com/getolympus
Muitas destas imagens levantam as seguintes questões: estamos ainda diante de uma fotografia, ou estaremos já no domínio das artes gráficas? E qual é o objecto destas fotografias: é o motivo da imagem, ou a própria imagem? Há alguma autenticidade nestas imagens tão carregadamente processadas? É que, nas imagens a que me refiro, o objecto é absolutamente secundário, tal como o são o domínio da técnica fotográfica e a intenção artística subjacente à fotografia. A actividade criativa e o domínio da técnica só surgem na fase posterior à tomada da imagem, uma vez que, com o Photoshop, é possível tomar uma fotografia mediocríssima e torná-la naquilo que o seu autor imagina ser uma obra de arte.
Daí em que não tenha dúvidas que a edição de imagem, quando exagerada, extravasa da fotografia e entra noutra área - a das artes gráficas. Há aqui um erro fundamental que inquina qualquer esforço do editor: é que a fotografia tem de ser original e interessante no momento em que é tirada. Uma fotografia indiferente ou desinteressante será sempre uma fotografia indiferente ou desinteressante, por muito que se manipule no Photoshop e se adicionem estrelas ou camadas. O Photoshop, quando usado sem temperança, nega a própria essência da fotografia: a captura de um momento que se pretende tornar duradouro. O conteúdo é substituído pela forma e a criatividade fotográfica dá lugar a uma criatividade (quando existe) a posteriori. A fotografia, ou o acto de fotografar, assume um lugar secundário e dá lugar a uma imagem que pode ter um forte impacto inicial, mas que em última análise é algo frívolo e vazio. Por outras palavras, a fotografia torna-se relativa. Daí que considere que, em certos casos, já nem sequer se pode falar de fotografia.

(*) High Dynamic Range Image: técnica que consiste na sobreposição de três imagens - uma correctamente exposta, outra sobreexposta e uma outra subexposta, para obter um gama dinâmica mais extensa.

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