Depois de todo o furor à volta da Olympus E-M5, cujo lançamento acompanhei com enorme expetativa, dei-me conta, ao meditar acerca dos argumentos a favor e contra a possível aquisição desta câmara, da facilidade com que poderia ter-me tornado em mais uma vítima da sociedade de consumo. Durante meses, a empresa em questão lançou sucessivos rumores e teasers da nova câmara, com o intuito óbvio de fazer nascer a ânsia de adquirir o produto na mente dos consumidores. Muitos ter-se-ão sentido compelidos a adquirir a câmara - imagino que a Amazon tenha já uma lista considerável de reservas -, mas eu sou mais prudente, talvez por nunca ter sido rico e o dinheiro me custar a ganhar. E este exemplo da E-M5 é apenas um numa escala e num segmento de mercado reduzidos: se pensarmos, por ex., nas filas que se formam à porta das lojas sempre que a Apple lança um novo produto - ou mesmo quando adiciona uma nova função a um já existente -, vemos que a indústria fotográfica, embora reduzida a uma dimensão microscópica, comunga dos vícios e perversões do pior consumismo.
O marketing que as empresas empregam desenvolve-se à volta de um conceito que é quase tão antigo como a publicidade: a criação de necessidades. Isto leva pessoas que não necessitam de um certo produto a querer adquiri-lo, muitas vezes com base num marketing enganoso. A verdade é que resulta, e as pessoas tendem a gastar o seu dinheiro em bens materiais de que na verdade não precisam, porque foram predispostas para tanto por uma verdadeira lavagem cerebral exercida pelos mecanismos do marketing e da publicidade.
Meus caros amigos: havia vida antes da invenção do telemóvel. As pessoas comunicavam na mesma, embora por outros meios. O conceito de amizade não nasceu com o Facebook. Vivíamos num planeta mais limpo, e em cidades mais bonitas, antes da invenção do automóvel. Houve até tempos em que lavávamos a roupa à mão. E não éramos tão infelizes como agora; não havia tantas neuroses, tanta agressividade e tanto individualismo.
E agora vou afirmar algo que poderá parecer estranho a muitos: havia gente a fazer belíssimas fotografias antes de introduzirem as câmaras digitais. Isto talvez colha ainda mais gente de surpresa, mas havia mesmo quem fotografasse os miúdos e o cão antes de a fotografia ser transposta para o domínio digital. Essas pessoas estimavam as câmaras como tesouros e conservavam-nas durante décadas. Hoje somos induzidos a adquirir novas câmaras (as lentes parecem ser relativamente secundárias para o marketing atual) de dois em dois anos, apenas porque o novo modelo tem um sensor mais XPTO e uma sensibilidade ISO de 102400, faz 800 fotogramas por segundo, tem um ecrã rotativo, vídeo, HDMI e outros disparates.
Este é, apesar de tudo, o lado benigno - ou menos nocivo - do consumismo, ao qual o consumidor inteligente pode tentar escapar. Depois há a perversão dos fabricantes, que introduziram e generalizaram o conceito de obsolescência programada. No caso das câmaras digitais, os obturadores têm uma longevidade que não vai para além dos 140000 disparos, e os corpos são concebidos para não durar mais que quatro ou cinco anos. Isto significa que, ao fim desse tempo, já olhamos para a nossa câmara como o fazemos para aquela torre bege, equipada com um processador Pentium IV e um leitor de disquetes, que era o computador que tivemos por força de substituir porque o processador avariou (porque hoje já nem sequer compensa mandar repará-lo). Comprámos, digamos, uma DSLR de acesso em 2009; entretanto, saiu uma igual em tudo, mas com um sensor com mais megapixéis. É tudo quanto basta para que nos sintamos obrigados a trocar de câmara - mesmo que estivéssemos satisfeitíssimos com as fotografias que fazíamos com aquela câmara obsoleta, que já sentíamos vergonha de exibir em público. Deste modo, precipitamo-nos para a loja mais próxima e compramos o último modelo - até porque o anterior já não vai durar muito mais, pensamos nós.
É assim que eles nos esbulham o dinheiro: enganando-nos, mentindo-nos, fazendo-nos sentir de que precisamos de algo de que não temos real necessidade. Isto aplica-se às câmaras, mas também aos automóveis, frigoríficos, máquinas de lavar, computadores, impressoras, lâmpadas, relógios - a lista podia continuar indefinidamente. No campo da fotografia, que é aquele que neste momento me interessa, tudo isto dá-me uma estranha vontade de fazer o mesmo que fiz com os aparelhos de reprodução musical. Tal como em 2000 comprei um gira-discos, apetece-me agora comprar uma câmara analógica. Talvez deste modo fique mais imune a esta loucura consumista, tal como nunca mais senti necessidade de comprar um leitor de CD novo depois de comprar o meu Rega Planar 3. Não que estas subtilezas do marketing não existissem já nos tempos da reprodução musical e da fotografia analógicas: o que não havia era esta loucura que hoje em dia se vê. Nos dias que correm somos, até, forçados a adquirir bens piores do que aqueles que tínhamos: lembro-me que os Volvo eram, na década de 80, concebidos para durar vinte e cinco anos; hoje, qualquer automóvel com 100 000 quilómetros está sujeito a avarias graves. E esta quilometragem pode ser atingida em três ou quatro anos.
Tudo isto acontece porque há que produzir cada vez mais, para que as empresas tenham lucros obscenos. E, para que isto aconteça, é necessário haver consumidores inconscientes, sempre prontos a adquirir a última novidade - mesmo, como referi, que esta seja pior que aquilo que tinham. Fazer bens de consumo duráveis é totalmente incompatível com esta lógica, porque se tivermos bens durante muito tempo não compramos bens novos e os produtos não escoam. É assim que funciona a economia nesta sociedade altamente perversa da qual os beneficiários são em cada vez menor número.
Esta realidade teve dois efeitos perversos sobre a fotografia: o primeiro foi o facto de, com a baixa de preços conseguida através de processos de fabrico mais simples (que redunda em menor qualidade) e da exploração de mão de obra barata, a fotografia ter-se banalizado ao ponto de toda a gente entender que tira grandes fotografias, mesmo que tenha na mão uma compacta comprada no Lidl por €59,99. O outro tem que ver com a maioria dos fotógrafos valorar mais o equipamento do que a qualidade das fotografias, considerando porventura mais importante fazer fotografias a ISO 25600 que encontrar motivos interessantes. E não quero discorrer acerca dessa perversão completa que consiste em transformar aquilo que é uma má fotografia numa imagem cheia de impacto através do processamento da imagem - i. e. o Photoshop -, porque isso já não é fotografia.
Hoje uma câmara pouco mais é que um computador que processa ficheiros de imagem. Perdeu-se - provavelmente para sempre - o romantismo de ter uma câmara analógica que continua a funcionar quarenta anos depois da sua aquisição. Perdeu-se a intenção artística, porque a câmara faz tudo em lugar do fotógrafo e está prenhe de novidades e funções inúteis. Por vezes sinto saudades dos tempos em que tudo implicava mais esforço - mas era também mais compensador. Não desminto as vantagens da fotografia digital, mas não consigo deixar de ser crítico em relação a ela. Quando perder esta capacidade, ter-me-ei tornado num bom robô - uma criatura produtiva, sempre disposta a sacrificar tudo na vida pelo lucro dos que verdadeiramente dominam o mundo. E eu não quero ser assim.
Hoje uma câmara pouco mais é que um computador que processa ficheiros de imagem. Perdeu-se - provavelmente para sempre - o romantismo de ter uma câmara analógica que continua a funcionar quarenta anos depois da sua aquisição. Perdeu-se a intenção artística, porque a câmara faz tudo em lugar do fotógrafo e está prenhe de novidades e funções inúteis. Por vezes sinto saudades dos tempos em que tudo implicava mais esforço - mas era também mais compensador. Não desminto as vantagens da fotografia digital, mas não consigo deixar de ser crítico em relação a ela. Quando perder esta capacidade, ter-me-ei tornado num bom robô - uma criatura produtiva, sempre disposta a sacrificar tudo na vida pelo lucro dos que verdadeiramente dominam o mundo. E eu não quero ser assim.
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