quarta-feira, 4 de julho de 2012

Fotografia e percepção

No meu último texto exprimi a ideia de que não existem regras apenas para fazer fotografias, mas também para as ver. Deixem-me explicar.
Ver uma fotografia é um processo que se rege pela percepção. Claro que cada um vê uma fotografia conforme a sua própria apreciação, que é subjectiva e individual, mas existem alguns princípios de composição, enquadramento e design que são o resultado da análise da percepção dos objectos e que o fotógrafo deve ter em conta para tornar uma fotografia inteligível, uma vez que tais princípios são de tal maneira universais que dificilmente se lhes pode escapar.
Assim, uma fotografia é vista percorrendo os olhos pela imagem, e não com o olhar fixando-se na sua totalidade ou em determinado ponto. Mesmo que este «varrimento» seja tão rápido que mal nos apercebemos dele, a verdade é que, em geral, os olhos percorrem a imagem a partir da zona superior esquerda - mas não do canto superior esquerdo, note-se bem -, daí que seja importante que o objecto principal da fotografia esteja nessa área, ou que, pelo menos, não existam nessa área outros objectos que contribuam para desviar a atenção do olhar relativamente àquele que se quis fotografar. Mesmo que o objecto não se situe na área superior esquerda, deve ter-se o cuidado de incluir linhas que, partindo dessa área, conduzam o olhar para o objecto no enquadramento. A criação de pontos de fuga, permitida pela diagonalização das linhas típica das grande-angulares, é uma boa maneira de formar essas linhas.
Esta forma como percebemos a imagem é a razão da existência da regra dos terços: cada um dos pontos de cruzamento das linhas que dividem o enquadramento corresponde aos espaços que a percepção tende a procurar. Uma imagem cujo objecto esteja completamente centrado tende a ser estática e desinteressante, a menos que o objecto preencha a totalidade do enquadramento. Esta forma de perceber a fotografia tem que ver com a maneira como somos treinados para perceber os objectos, a qual é adquirida durante a aprendizagem da leitura. Lemos os textos a partir da parte superior esquerda da página(*), e o olhar varre esta última de forma descendente,  ziguezagueando até ao fundo da página. Esta aprendizagem condiciona a nossa percepção de maneira fundamental - e não apenas na fotografia.
Uma das formas possíveis de evitar que a área a que me refiro - i. e. a zona superior esquerda da imagem, que é a que tem maior impacto visual por ser aquela por onde o olhar começa a percorrer a imagem - seja ocupada por elementos distractivos é o uso de espaço negativo - áreas que não são ocupadas por nenhum objecto, mas que, quando bem usadas, contribuem para a sensação de espacialidade da fotografia. O uso de espaço negativo é visto por alguns como informação desnecessária - ou mesmo como ausência de informação -, o que em certos casos é verdadeiro; contudo, o espaço negativo pode ser usado para transmitir, por ex., uma sensação de vastidão ou de vazio, ajudando a conferir expressão à fotografia.
Decorre também daqui que uma fotografia resulta melhor se não for demasiadamente preenchida. Deve evitar-se a tentação de meter tudo no enquadramento. Há um princípio de economia e simplicidade que deve, sempre que possível, ser respeitado. Fotografias preenchidas com muitos objectos tendem a ser confusas e raramente resultam bem, uma vez que o olhar se vai perder nessa multiplicidade em lugar de se deslocar apara aquilo que se pretendeu que fosse o objecto da fotografia. É esta a razão pela qual o bokeh, ou desfocagem do plano de fundo, resulta tão bem: ele evita que o olhar se disperse, concentrando-o na figura em primeiro plano. Pode, contudo, dar-se o caso de aquilo que se pretendeu com a fotografia ser a ilustração de uma diversidade de objectos: se for essa a intenção, deve ter-se o cuidado inverso, i. e. o de fazer com que nenhum objecto se destaque.
Depois há que ter certos cuidados com a geometria da composição. Há que atender ao equilíbrio dos elementos da imagem, porque o olhar é sensível a este factor. Mesmo que a imagem seja a de um objecto predominante pelo seu volume, deve sempre haver qualquer objecto no enquadramento que contrabalance esse predomínio, mesmo que de menor volume. Da mesma maneira, importa ter em conta que o olhar é extremamente sensível a desequilíbrios causados por alinhamentos deficientes (o olhar tende a procurar o rigor geométrico e a simetria), como por ex. uma linha do horizonte indevidamente inclinada. Uma inclinação de 1 ou 2 graus é o suficiente para que o olhar rejeite a fotografia, despertando uma apreciação negativa sobre as capacidades do fotógrafo.
A dinâmica da fotografia é outro factor importante. Se fotografamos uma pessoa em movimento, ou orientada para determinada direcção ou ainda olhando para um determinado ponto, é fundamental que essa pessoa seja colocada do lado oposto àquele para que olha, para onde está voltada ou em cuja direcção se desloca. Isto confere à fotografia uma sensação de direcção que é muito mais confortavelmente acompanhada pelo olhar do que se a pessoa figurasse no enquadramento como se estivesse a olhar ou a deslocar-se para fora deste, ou voltada para o exterior.
O próprio formato da fotografia contribui para a forma como esta é vista. A nossa visão é panorâmica, pelo que o formato horizontal é o que beneficia de maior aceitação - como o demonstra o facto de os sensores, bem como a película, terem esse formato. Contudo, o formato vertical deve ser empregue em retratos ou, de uma maneira geral, sempre que se fotografem objectos em altura - como, desde logo, figuras humanas em corpo inteiro. Uma fotografia de um objecto alto isolado resulta melhor em fotografias verticais, excepto se houver outras informações na imagem que justifiquem a opção pelo formato horizontal. E isto aplica-se mesmo nos retratos, sempre que houver outros objectos que contribuam para tornar a fotografia interessante e informativa. Já o formato quadrado (1:1) é, em regra, desinteressante, contribuindo muitas vezes para uma sensação de desconforto visual (excepto quando o objecto preencher a totalidade do enquadramento).
Este texto não tem a pretensão de ser exaustivo. Há muito mais a compreender quanto à percepção para ajudar a fazer melhores fotografias. Recomendo, em particular, a leitura dos respectivos capítulos do livro O Olhar do Fotógrafo, de Michael Freeman (ed. Dinalivro), que aprofunda estes temas. A minha intenção, ao escrever estas linhas, é fazer com que o leitor interessado fotografe na consciência de que a fotografia é para ser vista por outros, e que existem regras gerais quanto à forma como uma fotografia é vista pelas outras pessoas. Ter esta noção é meio caminho andado para fazer fotografias agradáveis e inteligíveis. Deve notar-se, contudo, que estas regras não são sagradas: a criatividade pode implicar a transgressão destas regras, mas o fotógrafo deve conhecê-las antes de as transgredir. Uma coisa é a transgressão consciente e propositada, outra a simples ignorância.
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(*) Esta é a regra «ocidental»; há culturas em que a leitura é feita da direita para a esquerda, como a árabe ou a chinesa.  

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