sábado, 12 de maio de 2012

Novidades da indústria fotográfica: uma orgia de Leicas

Gostava de gostar de Leicas, mas a minha costela socialista (não no sentido de militante do PS, que não sou e, de resto, este partido é tudo menos socialista) não me deixa. Há muitos e bons motivos para gostar de Leicas: são belíssimas, têm uma qualidade de construção muito acima da média, as lentes são fabulosas (ao que se diz, porque nunca experimentei nenhuma) e, acima de tudo, são parcialmente feitas em Portugal. Sim, a Leica dá emprego a operários portugueses: podia «deslocalizar» a produção para a China ou para a Tailândia, mas prefere ficar em território comunitário - mais concretamente em Vila Nova de Famalicão. Não só não despede, deste modo privando muitos trabalhadores de novas oportunidades (não é bom ter um primeiro-ministro como Pedro Passos Coelho?), como vai investir numa fábrica nova em Portugal e contratar mais operários. Depois há um facto incontornável: as minhas referências em fotografia usavam - ou usam - Leicas. De Koudelka a Gérard Castello Lopes, de HCB a Sebastião Salgado, todos eles faziam (fazem) fotografia com Leicas.
Estas são as boas razões para sentir estima pela Leica. Depois há o lado negativo - os preços, que fazem das Leicas contemporâneas pouco mais que adereços para ricos. São bens de Veblen, como lembra Mike Johnston no seu The Online Photographer, pelos quais o interesse aumenta na mesma proporção que o preço. Por outras palavras - quanto mais caros, mais vendem. É este um sinal do nosso mundo e do nosso tempo, em que a desigualdade e a distribuição iníqua da riqueza nunca foram tão longe. A simples menção dos preços das Leicas de que vou falar de seguida chega a ser obscena - mas não tanto como o facto de haver cada vez mais gente disposta a comprá-las. E não é por haver mais ricos: é por estes o serem cada vez mais, em detrimento de todo o resto do mundo. As Leica são, deste modo, um dos símbolos desta civilização decadente em que o dinheiro é tudo, e em que as pessoas são tanto mais valorizadas quanto mais dinheiro tiverem.
Uma câmara ou um Volvo XC60: a escolha é sua
E o que é que a Leica nos veio mostrar na passada quinta-feira? Uma compacta, que não é mais que uma Panasonic com o ponto vermelho da Leica chapado no painel frontal, e a X2, que custa o dobro da concorrente mais directa, a Fujifilm X100 (que não é exactamente uma câmara barata). Esqueçamos estes dois produtos: só um pateta que não sabe o que fazer ao dinheiro é que comprará a Leica compacta em lugar de uma Panasonic, ou a X2 em vez duma Fuji. Para além destas câmaras, a Leica apresentou uma lente nova, uma 50mm/f2, e dois corpos: uma M9 em versão Hermés, revestida de couro amarelo torrado (de um mau gosto extremo, mas deve haver quem a ache chiquérrima) e uma câmara que apenas fotografa a preto-e-branco, adequadamente denominada «M-Monochrom». A lente vai custar USD $7.195; a câmara monocromática custará $7.950 e a M9 Hermés pode ser sua pelas modestas quantias de $25.000 ou, na versão kit com três lentes, $50.000.
Destas novidades, só a câmara monocromática é verdadeiramente interessante. A M9 Hermés é o típico adereço de ricaço frívolo e ignorante: O couro amarelo alaranjado é, como referi acima, de um mau gosto lamentável e, para esfregar sal na ferida, o painel superior, que foi redesenhado por Walter De' Silva (o homem que deu ao mundo o Alfa Romeo 156 e depois deste apogeu foi desenhar carros banais e monótonos para o grupo Volkswagen), não tem sapata para o flash! Não, esta não é uma câmara para fotógrafos. Aliás, nem sequer vejo muito bem quem é que quererá comprar uma câmara destas. Talvez a amante de Bernard Madoff. Note-se que, ao comprar esta câmara, se está a comprar um sensor full frame, fabricado pela defunta Kodak, que não vai além de ISO 2500 e produz um nível inaceitável de ruído a ISO 800. Um sensor full frame, repito. Do mesmo tamanho que os da Nikon D4 e da Canon 1D.
A objectiva 50mm/f2 é, não tenho dúvidas, um item de enorme qualidade. Imagino que não tenha aberrações cromáticas nem produza distorção de qualquer espécie. Mas, num universo onde f1.8 já é considerado uma abertura estreita por muitos, a ideia de dar mais de €6.000 por esta lente - que é de focagem manual e não estabilizada - é pura e simplesmente inconcebível. Espero que, ao menos, venha com um para-sol...
A câmara a preto-e-branco é a única cuja compra poderia considerar se me saísse o Euromilhões. Antes de mais, é linda. E eu fotografo cada vez mais a preto-e-branco. Com esta câmara, que ao que se diz tem uma qualidade superior por o seu sensor não ter filtro RGB nem filtro anti-moiré, teria uma câmara discreta, de altíssima qualidade... com a qual seria dificílimo fazer fotografia de rua por causa da focagem manual! E este é um problema ainda mais grave por ser uma câmara com visor de telémetro, sem ampliação da imagem que permita confirmar a focagem, como até a minha humilde E-P1 me faculta. De resto, seria sempre uma segunda câmara, porque iria precisar de outra para fotografar a cores. (Talvez a M9 Hermés...) Uma câmara para fotógrafos experientes, dirão alguns - mas a verdade é que esta câmara vai acabar por ser comprada por diletantes ricos. Muito ricos. Ou vai ser usada por profissionais «patrocinados» pela Leica. Em todo o caso, não deixa de ser um produto interessante.
Enfim, são estas as novidades do mundo Leica: duas compactas com preços abusivos, uma lente de focagem manual e uma abertura que não tem nada de especial por um preço proibitivo, uma câmara muito limitada que custa mais de €20.000,00 só por ser revestida com couro amarelo alaranjado e uma câmara a preto-e-branco que só serve para fotografar paisagens (que são mais interessantes a cores). Tudo isto por preços que são um insulto a todos os milhões de pessoas que atravessam as maiores dificuldades à custa dos potenciais compradores destas Leicas. Nem o facto de a Leica dar trabalho a portugueses me faz respeitar estes produtos.   

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