terça-feira, 19 de julho de 2011

Equipamento vs. olhar (1)

Durante vários anos fui um aspirante a audiófilo. Escrevi «aspirante» porque sempre me faltou um requisito essencial para ser um verdadeiro audiófilo - ser rico. Muito rico. Um dia descobri que era um hobby absurdo, e que o meu interesse estava a ser desviado da música para o som reproduzido pelos aparelhos e acessórios. Desperdicei horas preciosas da minha vida tentando resolver os problemas de qualidade sonora, adquirindo cabos caríssimos e inventando soluções que roçavam o ridículo, usando a música como mero instrumento de avaliação do desempenho do equipamento. Resolvi que estava num plano completamente fora da realidade e, o que era pior, a perder o gosto pela música. Parei com as compras de material de Hi-Fi, proibi-me de adquirir revistas especializadas e abandonei as consultas e pesquisas na Internet acerca do assunto. A vida é demasiado curta para a desperdiçar com questões totalmente acessórias que me roubaram o prazer de pôr um disco a tocar e apreciar a música.
Não permitirei que aconteça o mesmo com a fotografia. Tenho uma câmara que, apesar dos defeitos, é capaz de fotografias excelentes; tenho duas belíssimas lentes e os filtros para suprir problemas de luminosidade com que me deparei; acresce a isto um tripé de qualidade e um bom saco para transportar todo o equipamento. Não tenho interesse em fazer novas aquisições de material de fotografia. Tudo o que me interessa, neste momento, é treinar o olhar e melhorar as minhas noções inatas, ou intuitivas, de composição e enquadramento. As câmaras não fazem isso por mim, nem é decerto o Photoshop que me vai ajudar a encontrar um ângulo ou perspectiva interessante. Posso ter uma Leica S2 ou uma Nikon D3x, mas se não tiver a imaginação ou a atenção necessárias para tirar fotografias interessantes, o equipamento não me serve para nada: mais me valeria contentar-me com o telemóvel.
Com efeito, não é o equipamento que faz o bom fotógrafo. O equipamento é bom e útil, mas apenas na justa medida em que permite dar rédea solta à criatividade. Se esta não existir, o equipamento é um desperdício de dinheiro, de tempo e de saúde mental: a pessoa fica tão obcecada com o equipamento que acaba por adoptar comportamentos estranhos, como culpá-lo pela sua falta de talento. Conheço gente que comprou boas câmaras apenas para ficar desiludida com a qualidade das imagens e culpar o desempenho do equipamento, quando o que lhes faltava não era uma boa câmara nem uma boa lente, mas o domínio de noções básicas como a forma como a câmara capta as imagens - i. e. a exposição -, a composição e o enquadramento. A alguns, por via do desconhecimento dos processos ópticos de captação da luz, faltava a própria compreensão das funções da câmara. Também conheço quem tenha comprado a câmara mais evoluída do mercado - sendo que a sua noção de «mais evoluída» consistia num número ISO mais elevado do que a concorrência apresenta - apenas para tirar fotografias deploráveis dos catraios a brincar na praia! E nem vale a pena mencionar os saloios que se deixam seduzir pelo número de pixéis, sem saberem sequer o que isso é ao certo...
Feita com uma compacta (Canon Power Shot A3150is)
Em contrapartida, há muita gente a fazer fotografias espantosas com câmaras modestas. Há pessoas que têm uma imaginação tão vasta que o equipamento acaba por se tornar num severo obstáculo à sua criatividade. Por vezes olho para fotos dessas pessoas e não consigo deixar de imaginar como elas poderiam ser muito melhores com um equipamento adequado. A minha própria experiência mostrou-me esta realidade tão simples: tudo começa no olhar. Uma boa fotografia implica saber apreender um objecto de uma forma que não tem de ser necessariamente original, mas deve ser interessante. Implica o trabalho intelectual de calcular a forma como os objectos que vemos através do nosso olhar vão ficar enquadrados no rectângulo que é a fotografia, implica compor a imagem mentalmente antes de disparar o obturador. E implica, também, algo que a aquisição de bom equipamento pode causar a sensação ilusória de se ter, mas que é algo que tem de estar no nosso espírito: o gosto da fotografia. Tudo o mais é secundário: o material é perfeitamente acessório em relação a essa essencialidade que é o instinto do fotógrafo. Quem não o tiver, mais vale dedicar-se a outro hobby...

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