sexta-feira, 22 de julho de 2011

Questões legais da fotografia

Já tinha em mente escrever alguma coisa sobre aspectos jurídicos da fotografia, mas ter visto o vídeo que descobri no dpreview.com apressou a minha decisão.
O principal problema jurídico da fotografia é, evidentemente, o seu potencial conflito com o direito à imagem e com o direito à reserva da vida privada. Como não estou a escrever para paparazzi, esqueçamos, por agora, este último direito para nos concentrarmos na análise do direito à imagem.
A lei civil configura o direito à imagem como um direito de personalidade; este direito está, por via desta qualificação legal, incluído entre direitos inatos e incindíveis da pessoa humana, como, desde logo, o próprio direito à vida. É, deste modo, um direito universal, absoluto e erga omnes, i. e. oponível a toda e qualquer outra pessoa ou entidade. Com efeito, os direitos de personalidade são aqueles que cada um adquire por força do seu nascimento, correspondendo, na lei civil portuguesa, aos direitos enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. A violação destes direitos pode fazer o infractor responder pela prática de um crime (e. g. homicídio, ofensas à integridade física, injúria, difamação, etc.) ou responder civilmente, constituindo-se, no plano da lei civil, na obrigação de indemnizar o lesado.
Esta introdução serviu apenas para dar um contexto ao direito que nos interessa enquanto fotógrafos: o direito à imagem. A tutela deste direito está consagrada no artigo 79.º do Código Civil, que transcrevo:
Artigo 79.º
(Direito à imagem)
1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no n.º 2 do artigo 71.º, segundo a ordem nele indicada.
2. Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.
3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.
Como se vê, a regra é a da proibição da divulgação da imagem das pessoas - o que é diferente da recolha da imagem. O que a lei proíbe, com efeito, é a difusão - por exposição, publicação ou comercialização - da imagem de alguém sem o seu consentimento. Esta proibição decorre da consagração do princípio da inviolabilidade dos direitos da personalidade, mas está bom de ver que, se fosse interpretada como uma proibição absoluta - incluindo a tomada de imagens -, seria impossível tirar fotografias de locais onde estivesse uma só pessoa que fosse; de igual modo, seria ilícito tirar fotografias de um comício ou manifestação. Se este preceito legal fosse entendido de maneira restrita, Henri Cartier-Bresson e Garry Winogrand não teriam ficado conhecidos como fotógrafos, mas como reclusos. 
Há, evidentemente, uma colisão entre o direito à imagem e outros direitos, como o de informar ou - o que mais de perto nos concerne - o direito à criação artística. Há, por outras palavras, um conflito entre a liberdade individual da pessoa enquanto titular do direito à imagem, e a liberdade de cada um, exprimida, no nosso caso, na liberdade de colher imagens fotográficas.
Compete à lei resolver conflitos desta natureza; aliás, é para isto que a lei existe - para harmonizar direitos e liberdades conflituantes, de maneira a permitir a convivência em sociedade. A lei resolve este conflito de direitos através da excepção prevista no n.º 2 do artigo 79.º do Código Civil. O direito à imagem cede perante a liberdade de recolha de imagens que é reconhecida a todos os indivíduos. Não deixa, apesar desta excepção, de ser um direito absoluto: aquele que se sentir ofendido com a divulgação pública da sua imagem (do seu retrato, na linguagem antiquada de um código que entrou em vigor em 1967) tem o direito de ser ressarcido do prejuízo que essa publicidade causar ao seu bom nome e reputação (n.º 3).
A fotografia de pessoas em locais públicos é livre. É este o princípio que decorre do artigo 79.º, n.º 2. Do mesmo modo, a fotografia de pessoas que participem em eventos públicos é também livre, tal como o é a recolha de imagens de figuras públicas. Que não haja equívocos quanto a isto. Os fotógrafos de rua podem ficar tranquilos, desde que tenham o cuidado de fotografar pessoas em locais públicos. O que não podem fazer é fotografar pessoas de tal forma que a fotografia afecte a reputação, ou mesmo o simples decoro da pessoa fotografada. São, deste modo, bastante largos os limites do fotografável, e relativamente ténue a margem de proibição.
É importante desfazer aqui uma preconcepção que impede muitos fotógrafos de se exprimirem artisticamente, por receio de estarem a violar o direito à imagem: a fotografia de pessoas, dentro das condições previstas no artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil, é livre e não depende de autorização ou consentimento das pessoas fotografadas. O único limite é a divulgação das imagens em condições ofensivas, como se prevê no n.º 3. A pessoa fotografada não tem, ao contrário do que alguns erroneamente pensam, direito a exigir que o fotógrafo apague a fotografia ou, no caso da fotografia analógica, lhe entregue o rolo. Isto decorre de um raciocínio muito simples: a violação do direito à imagem, tal como é configurada no n.º 3, não se consuma com a gravação da imagem na câmara, mas com a sua divulgação (exposição, publicação ou comercialização). É o que decorre de uma leitura atenta da disposição legal. A protecção legal do direito à imagem consubstancia-se na proibição de difundir imagens, e não na de as captar.
Por outro lado, a fotografia de pessoas e a sua divulgação não viola o direito à imagem quando a ela está subjacente um fim cultural. E a lei, como resulta da leitura do n.º 2, abstém-se de proibir a recolha de imagens quando esta seja feita com fins culturais. Podemos discutir o que se entende por fins culturais - e eu sou daqueles que entendem que cultura é tudo o que o homem acrescenta à natureza -, mas não tenho dúvidas em considerar a fotografia uma forma de expressão artística. A despeito da sua democratização, muitos de nós ainda fazem fotografia para satisfazer um impulso estético ou para exprimir uma ideia. Se fosse de considerar uma proibição absoluta e universal de colher imagens de pessoas, seria a própria liberdade de expressão que seria inaceitavelmente cerceada.
Esta é a maneira como a lei harmoniza o direito individual com um interesse mais geral. A protecção do direito à imagem não desaparece - não deixa de ser um direito absoluto -, mas a protecção legal está em concordância com as exigências de uma sociedade livre e com a realidade do nosso tempo, no qual a informação tem um lugar preponderante nas nossas vidas.
Em resumo (e com interesse para a actividade de fotógrafo amador):
1. O direito à imagem é um direito absoluto, ao qual corresponde uma obrigação passiva universal - a obrigação de todos os demais respeitarem esse direito, abstendo-se de expor, divulgar ou comercializar o retrato de uma pessoa.
2. O que a lei pune não é a recolha de imagens, mas a sua difusão sem o consentimento do titular do direito.
3. Não é necessário consentimento para fotografar pessoas:
a) Quando estas sejam figuras públicas;
b) Quando participem em eventos públicos;
c) Quando a sua imagem surja enquadrada em locais públicos.
4. A recolha de imagens é livre quando corresponda a um fim cultural.
5. A difusão de imagens de pessoas em espaços públicos ou com fins culturais só é proibida quando constitua ofensa à honra, reputação ou simples decoro da pessoa visada.

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