Entre os anos 30 e 80 do ano passado, os grandes fotógrafos dedicaram-se àquilo a que se chamou «fotografia de rua». Fotógrafos como Robert Doisneau, Garry Winogrand, Josef Koudelka, o nosso Gérard Castello Lopes e o maior entre todos, Henri Cartier-Bresson, iam para a rua capturar instantâneos da vida das grandes metrópoles, episódios da vida dos transeuntes que se tornaram imortais através das lentes de 35mm das suas Leica e criaram fotografias históricas (geralmente a preto-e-branco) que ainda hoje são veneradas por amadores e profissionais.
O que é hoje a fotografia de rua? Há, decerto, as mesmas oportunidades de captar momentos significativos de pequenas histórias que, embora despercebidas, estão carregadas de significado, mas só são visíveis a um olhar atento - a alguém que, para além do domínio técnico da câmara, saiba ver com olhos de ver. Há milhares de episódios da vida quotidiana à espera de ser fixados pelo disparo do obturador. Simplesmente, hoje não é tão fácil fazer fotografia de rua como na época de ouro da fotografia.
Há vários motivos para que isto aconteça. Quando Robert Doisneau fotografou o célebre beijo junto do Hotel de Ville, a fotografia era ainda uma raridade; as pessoas deixavam-se fotografar com mais facilidade, talvez porque intuíssem que iam ficar imortalizadas num pequeno rectângulo composto no visor das câmaras dos pouquíssimos fotógrafos que andavam pela rua.
O que nos leva a outro motivo pelo qual já não é tão fácil tirar fotografias de pessoas. Estas tornaram-se mais conscientes dos seus direitos - legítimos, como é evidente - à imagem e à privacidade. Como comentou o meu mentor Fernando Aroso, ao ver uma foto minha em que duas senhoras de certa idade conversavam sentadas nas suas cadeirinhas no Jardim do Passeio Alegre: «as pessoas hoje não andam a dormir». Já me aconteceu presenciar momentos de oposição à tirada de fotografias que só não se transformaram em discussões azedas - ou pior - pela intervenção de terceiros. A publicação de fotografias de pessoas depende do seu consentimento, salvo se essas pessoas forem de grande notoriedade ou se as fotografias forem de lugares públicos ou de interesse artístico; porém, o visado pode sempre opor-se à publicação das suas fotografias (artigo 79.º do Código Civil). Há, naturalmente, quem goste de aparecer nas fotografias e se deixe posar voluntariamente, mas isto traz um problema ao fotógrafo de rua amador ou consagrado: a fotografia perde toda a espontaneidade. E esta é a característica mais atraente da fotografia de rua.
Acresce a tudo isto algo que já referi antes, mas vale a pena analisar nas suas implicações. Na era que se estendeu de Cartier-Bresson a Garry Winogrand, a fotografia era analógica e, enquanto meio de expressão artística, apenas estava ao alcance do profissional e do amador verdadeiramente dedicado. A tarefa de ajustar as definições da câmara e a focagem manual não eram para qualquer um. A fotografia digital veio democratizar a fotografia, de tal maneira que qualquer um pode fotografar - nem que seja com o seu telemóvel. Este enxamear de fotografia trouxe benefícios, mas teve o efeito de se tornar um incómodo para as pessoas que, como disse antes, estão cada vez mais conscientes dos seus direitos de personalidade e ciosas da sua intimidade.
Diria, por tudo isto, que a fotografia de rua correspondeu a um movimento artístico que teve a sua época, mas que hoje é quase inviável. Não podemos fotografar como há cinquenta anos atrás, do mesmo modo que ninguém pinta, esculpe ou escreve como no passado. A arte evolui; a fotografia de rua é hoje praticamente impossível - pelas razões citadas -, e quem se dedica a ela corre o risco de parecer um pateta pretensioso com aspirações a ser o novo Cartier-Bresson (como se os pobres coitados que vendem os seus quadros na Rua de Santa Catarina pudessem ser comparados a Matisse ou a Rembrandt...) Ou corre o risco de ser tomado por um imbecil e ficar sujeito à fúria do fotografado.
Curiosamente, há estudos que demonstram que as fotos de paisagens ou arquitectura tendem a ser esquecidas, e que as fotografias que interessam a quem vê são as de... pessoas. Há aqui um paradoxo evidente: as pessoas gostam de se ver em fotografias, mas não se deixam fotografar facilmente. Não sei como se resolve esta contradição. O retrato pode ser interessante, e é-o quando é feito por grandes fotógrafos que sabem captar as emoções que os rostos mostram. Os retratos de António Pedro que Fernando Aroso executou permitem a quem os vê aperceber-se do estado de espírito desse nome maior do teatro português. As fotografias de Sebastião Salgado são outro exemplo, embora noutro contexto. Os rostos têm uma carga emocional de tal ordem que são capazes de criar uma sensação duradoura a quem os contempla.
Resumindo - se a fotografia de rua teve a sua época, nem por isso tirar fotos de pessoas deixou de ser interessante. A questão é fazê-lo no respeito da privacidade e do direito à imagem de cada um. O que, convenhamos, não é fácil.(Publicado originalmente no Queremos Mentiras Novas a 11 de Junho de 2011)
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