sábado, 24 de março de 2012

Questões legais da fotografia: os direitos de autor (4)

O que escrevi até aqui aplica-se aos direitos de autor em geral; a protecção legal da obra fotográfica, porém, tem uma especificidade que limita o seu âmbito. Com efeito, não é qualquer fotografia que é digna de tutela autoral. Isto compreende-se facilmente se tivermos em conta que, na generalidade dos casos, o objecto da fotografia é algo pré-existente à ideia do autor. Salvo algumas (poucas) excepções, a fotografia descreve cenas que não são produto da mente do fotógrafo; este não cria a realidade que fotografa, porque esta já existe no mundo exterior. Se fosse de admitir uma tutela dos direitos de autor semelhante à das outras obras, teríamos de admitir, por absurdo, que um fotógrafo pudesse ter o direito exclusivo de fotografar uma determinada paisagem ou edifício apenas porque foi o primeiro a fazê-lo: a sua fotografia da Torre dos Clérigos ou da Ponte 25 de Abril seria o original, e todas as que fossem feitas posteriormente daqueles lugares, por outros fotógrafos, seriam cópias. Não é difícil imaginar os excessos que uma protecção dos direitos de autor com esta extensão produziria.
Para evitar que isto suceda, a lei restringe a propriedade autoral da fotografia. Assim, o artigo 164.º do CDA exige que a fotografia possa considerar-se como criação artística pessoal do seu autor, quer pela escolha do seu objecto, quer pelas condições da sua execução.
Isto significa que nem todas as fotografias podem ser protegidas pela propriedade autoral. Para que uma fotografia possa ser considerada obra para efeitos do CDA, não basta que seja original: é ainda necessário que o objecto seja único (condição que pode ser de difícil verificação) ou, pelo menos, que a sua execução seja única.
Este último critério introduz um elemento de subjectividade que, em último caso, é deixado ao arbítrio do juiz. E leva-nos a uma discussão académica sobre o tema da originalidade da fotografia: o que torna uma fotografia única?
O objecto dificilmente será único: há milhões de fotógrafos a colher imagens dos mesmos objectos. Se fosse este o único critério, a protecção dos direitos autorais limitar-se-ia a retratos e à pintura com luz. De fora ficariam todas as paisagens, objectos da natureza, edifícios ou lugares, uma vez que estes estão ao dispor de qualquer fotógrafo, não podendo deste modo ser sujeitos à propriedade intelectual.
O que releva verdadeiramente, para tutela do direito moral, é a apreensão de um objecto através de uma perspectiva única, ou pelo recurso a determinadas técnicas fotográficas que tornam a fotografia única e irrepetível. Aqui deve ter-se em linha de conta a composição e o enquadramento, pois um objecto, apesar de já ter sido fotografado por milhões de pessoas, pode sempre ser visto de uma maneira inteiramente original. Do mesmo modo, o recurso a técnicas fotográficas pode servir para conferir originalidade e unicidade à fotografia. Socorrendo-me do exemplo de um tipo de fotografia a que me tenho dedicado ultimamente, direi - se me é permitida a imodéstia - que, se é verdade que fotografar as rochas de uma praia nada tem de único ou original, também o é que são poucos aqueles que as fotografam ao lusco-fusco, com velocidades de disparo lentas, de maneira a produzir o arrastamento das ondas do mar. Dentro das técnicas fotográficas deve ser incluído também o processamento da imagem: com efeito, o Photoshop pode contribuir para conferir originalidade a uma fotografia, tornando-a diferente de qualquer outra que tenha o mesmo objecto e, deste modo, fazendo dela uma criação artística pessoal. Em suma: o emprego de técnicas fotográficas que tenham a virtualidade de transmitir o pensamento artístico do fotógrafo e individualizar a imagem pode conferir à fotografia o estatuto de obra para efeitos de direito de autor.
O CDA prevê ainda duas regras importantes quanto a fotografia: a primeira prevê a tutela dos direitos de autor quando a fotografia tem por objecto uma obra de artes plásticas de autor diverso. Se alguém fotografar, por ex., uma pintura, o fotógrafo deve mencionar o autor desta última. A fotografia, neste caso, implica uma utilização de uma obra sujeita a direitos de autor, e esta é a forma de assegurar a tutela do direito deste último, protegendo-o de uma utilização abusiva.
O outro caso é o da alienação do negativo. Como é evidente que o CDA entrou em vigor antes do advento da fotografia digital, deve aqui entender-se também a transmissão do ficheiro de dados. Esta alienação implica (artigo 166.º do CDA) a transmissão de todos os direitos em favor do adquirente do negativo ou do ficheiro de dados, salvo se houver estipulação em contrário.
Também na fotografia existe a separação entre os direitos de propriedade sobre a obra e o direito moral de autor, ou propriedade autoral, salvo nos casos de alienação do negativo (como vimos anteriormente) ou de fotografia encomendada, aplicável aos retratos, em que a pessoa retratada tem o direito de transmitir a fotografia sem o consentimento do fotógrafo. No caso de alienação de uma impressão ou revelação, porém, uma coisa é a propriedade do suporte-papel e outra a propriedade autoral. Para que esta última seja efectivamente protegida, o CDA parece exigir que a fotografia contenha o nome do fotógrafo (artigo 167.º, n.º 1, al. a), do CDA). 
Que dizer desta regra? Será que o legislador apenas quis conferir direitos autorais no caso de a obra ser autógrafa? Creio que não. Deve tutelar-se o direito do autor que, por inadvertência, boa fé ou qualquer outro motivo, não fez incluir o seu nome na obra. O carácter absoluto do direito de propriedade admite que a sua prova possa ser feita por qualquer meio; a protecção da propriedade intelectual nasce com a criação da obra, não dependendo de qualquer acto posterior (como o é a inclusão do nome). Se for possível ao autor fazer prova da autoria da obra, devem os meios de prova que estejam ao seu dispor ser admitidos. Sou do entender que a norma do artigo 167.º, n.º 1, al. a), do CDA deve ser interpretada como apenas se aplicando à transmissão da obra, de modo a assegurar que a propriedade intelectual não se transmita fora dos casos da alienação do negativo e da fotografia encomendada.
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