quarta-feira, 14 de março de 2012

Resmunguices

Há uns bons anos atrás - talvez dez, já não sei bem -, estava no balcão da Imacústica, no Porto, quando entra pela loja um sujeito com meia dúzia de CDs na mão, que pressurosamente mostrou ao balconista: CDs de artistas femininas vulgares, como a Dulce Pontes. «Quero ouvir umas vozes» - exclamou o indivíduo. Deve ter sido nesse momento que decidi deixar de ser audiófilo: nunca me passaria pela cabeça comprar música em função do desempenho da alta fidelidade, ou como simples teste desta - e muito menos comprar música de que não gosto porque soa bestial na aparelhagem. Foi a música que me levou à alta fidelidade, e não o oposto. Desde então as minhas únicas aquisições foram em 2009: uma Ortofon 2M - e só porque precisei de substituir a cabeça anterior, uma fabulosa Ortofon MC 15 Super II - e um rádio, o Tivoli Audio Model One. É com este último que as minhas audições de música são feitas: está sempre sintonizado na Vodafone FM, ligo-o e fico a conhecer música actual: Florence & The Machine, Fleet Foxes, King Krule, Hot Chip e dezenas de grupos portugueses que fazem música extremamente interessante. O leitor de CD passa semanas sem funcionar e raramente ligo o amplificador.
Quando adoptei a fotografia como hobby (uma noção um pouco redutora, que não traduz correctamente o meu envolvimento com a fotografia, mas que por agora serve), decidi que nunca me tornaria um tarado da técnica. Porque, assim como há audiófilos capazes de descobrir diferenças do dia para a noite por mudarem de uns cabos Kimber para uns Transparent (e há gente capaz de trocar milhares de euros por aquilo que não é mais que fios de cobre), também há loucos destes no meio fotográfico. E eu não quero ser um deles. Quero avaliar tudo pela minha cabeça, e não por aquilo que os websites, as revistas e os gurus me dizem que é fantástico. Há um marketing bastante eficaz no mercado fotográfico, que sabe procurar e criar necessidades junto do público alvo com a mesma tenacidade com que Pavlov pôs um cão a salivar ao ouvir uma sineta: basta apresentar uma câmara com um sensor grande, com muitos megapixéis e uma sensibilidade ISO estratosférica, para pôr os consumidores a babar-se diante dos monitores dos seus computadores.
Isto é ridículo. Ninguém precisa de uma sensibilidade ISO superior a 3200 - com a qual os níveis de ruído são intoleráveis, nem que seja com uma Nikon D3 -, mas as pessoas ficam loucas quando vêem imagens em condições de boa luminosidade, tiradas com níveis elevados de ISO e com velocidades de disparo rápidas, relativamente limpas de ruído. Nem sequer raciocinam que a iluminação dos objectos é de tal ordem que o ruído se torna imperceptível, e que só em condições reais é possível aferir o verdadeiro desempenho do sensor. E as pessoas que, completamente iludidas, compram essas câmaras, vão acabar por fotografar motivos que nunca lhes passaria pela cabeça fotografar, apenas para justificar a aquisição de uma câmara com sensibilidades ISO elevadíssimas. Tal como o sujeito ao balcão da Imacústica. Não - eu não vou por aí. Tal como abandonei a audiofilia quando esta começava a interferir com o meu gozo de ouvir música, também não me deixarei embarcar nessa loucura de, sendo um leigo, discutir aspectos técnicos da fotografia com a autoridade de um cientista. Porque é isso que os audiófilos, tal como os pixelpeepers e gearheads que pululam na Internet, fazem: apesar de não saberem distinguir um Ampere de um Watt, discutem a impedância, a resistência e a inductância com a fluência de um catedrático.
Ainda que estes fotógrafos discutissem aspectos técnicos importantes, como a composição e o enquadramento (são técnicas!), a abertura, a velocidade do disparo ou a medição - factores que verdadeiramente contam para a obtenção de boas fotografias -, poderia suportar esta idiotia que se vê nos websites de fotografia, mas o que eles discutem não é técnica - é tecnologia. São coisas perfeitamente secundárias, que não têm grande influência no processo criativo da fotografia: o tamanho do sensor, o número de pixéis, o ISO. Curiosamente, pouco falam de lentes - como se estas fossem acessórios - e, quando o fazem, é para discutir a abertura e a distância focal com base em conceitos empíricos que se aproximam da superstição. Alguns destes iluminados acham que existe uma «abertura equivalente», tal como existe uma distância focal equivalente, i. e. que a abertura varia conforme a área do sensor da câmara em que a lente é montada!
Eu quero fazer boas fotografias. A câmara e as lentes são simples instrumentos para melhorar a minha expressão. E hei-de manter-me fiel a este princípio. Nunca perverterei as minhas prioridades: fazer boas fotografias implica uma boa câmara e boas lentes, mas nunca vou fazer fotografias em função do equipamento que tenho, ou para justificá-lo. 

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