A fotografia não é a arte mais amada em Portugal. Aliás, não sei se o meu povo ama alguma arte. (O futebol não pertence a esta categoria.) Daí que seja sempre de louvar que uma reportagem sobre um fotógrafo tenha passado na televisão, e logo no canal público mais visto e a uma hora prime. Senti-me compelido a ver a reportagem de ontem, 30 de janeiro, na RTP1 sobre João Silva, o fotojornalista cuja vida se alterou drasticamente há dois anos, quando pisou uma mina no Afeganistão.
Sei bem que, se não fosse este acidente, a reportagem não teria acontecido, e que o assunto da reportagem foi mais o homem João Silva que o fotógrafo. Com efeito, quem não conhecesse a fotografia de João Silva teria ficado igualmente desconhecedor depois da reportagem. Contudo, não deixou de ser interessante: a reportagem decorreu como uma conversa entre amigos, na qual foi possível aprender algo sobre o homem. Tenho, neste particular, a noção que a expressão fotográfica emana do espírito do fotógrafo (por oposição à sua racionalidade), e que a fotografia diz muito sobre a personalidade, os gostos, a maneira de viver, as ideias e a sensibilidade do fotógrafo - mesmo quando dela apenas se extrai uma intenção estética. Tal como se adivinha a personalidade do escritor nos seus textos ou a do compositor na sua música. Se excetuarmos autores como Jorge Luís Borges, cuja obra é puramente racional, inteiramente despida de qualquer subjetividade (depurada daquilo a que as pessoas com pretensões intelectuais chamam «vivência»), a criação artística é incindível do artista. Conhecer a vida de João Silva foi compreender um pouco melhor a sua fotografia, a qual conheci na exposição a que me referi neste blogue.
Durante a reportagem, apercebi-me um pouco melhor de algo que já resultara patente das fotografias expostas no Centro Português de Fotografia: João Silva tem um sentido composicional que o coloca num nível a que muito poucos fotógrafos podem ascender. É necessário, nos cenários de guerra em que João Silva trabalhou, pensar muito rapidamente acerca da composição e do enquadramento. E as fotografias que vi, bem como as que a reportagem mostrou, demonstram uma capacidade invulgar para tomar decisões quanto à composição em frações de segundo. Da fotografia de João Silva não resulta apenas que este é um fotógrafo rápido e atento e um fotojornalista competentíssimo, mas também que tem um sentido estético fora do comum, uma sensibilidade imensa que faz com que as suas imagens transcendam a qualidade de mero documento para se tornarem em manifestações artísticas.
Também me ocorreu, enquanto via a reportagem, algo que tenho por adquirido há muito: que o equipamento é um mero acessório da criação fotográfica. Nunca, ao contemplar as suas fotografias, me ocorreram pensamentos fúteis como «aqui usou uma grande-angular», ou «aqui usou uma abertura f2.8»: a técnica está presente, e é magistralmente dominada, mas não é mais que uma ancilar da expressão artística. Não vale a pena negar que foi usado o melhor equipamento disponível, nem seria inteligente afirmar que este não contribuiu para a qualidade das imagens e para a sua expressão; simplesmente, este é um aspeto de que qualquer um que tenha um pouco de sensibilidade se abstrai rapidamente ao ver as fotografias de João Silva.
Está completamente fora das minhas cogitações publicar aqui fotografias de João Silva, por uma questão de direitos autorais. Decerto já inseri neste blogue fotografias de diversos fotógrafos, mas sempre assegurando-me que estas haviam já caído no domínio público, ou que os respetivos direitos haviam sido alienados a terceiros. Para ver fotografias de João Silva, sigam esta ligação. Reparem, em particular, na terceira: é um dos momentos em que a fotografia mais se aproximou da perfeição.
Sem comentários:
Enviar um comentário