Sabem aqueles grupos de adolescentes que vemos sentados nas praças das nossas cidades, de lápis de carvão na mão, alternando o olhar entre uma estátua e o caderno de papel Cavalinho? Todos os que se cruzam com eles os admiram. E eu também. Estão a fazer arte, ou a aprender a fazê-la. O mesmo com aqueles jovens que andam pelas ruas com estojos cilíndricos negros a tiracolo e rectângulos de esferovite e K-Line debaixo do braço: são alunos ou estagiários de arquitectura - e a arquitectura, enquanto expressão de uma estética e de um estilo, não pode deixar de ser considerada arte. E todos os transeuntes os olham com respeito, talvez até com orgulho. E eu também. Um dia poderemos, talvez, se a sorte e o talento estiverem do lado deles, ver um edifício maravilhoso concebido por estes jovens de ar sofisticado e rebelde. E o indivíduo sentado num banco de jardim, escrevendo notas num caderno ou num bloco, rodeado de pastas anarquicamente desorganizadas e com uma pilha de livros a seu lado? É um escritor - quem sabe um poeta. É um artista; todos lhe devem respeito e consideração. Eu também. E que dizer dos músicos de rua? Um dia passei pela Rua de Santa Catarina e uma rapariga, uma estrangeira, tocava no seu violino as Suites para violoncelo de J. S. Bach - uma das mais fabulosas criações do génio humano. Parei junto dela, escutando a música que a rapariga de olhos belíssimos executava enquanto os peões lhe atiravam moedas para dentro de uma boina pousada no chão aos seus pés. É muito raro ver pintores na rua, mas, quando estes aparecem, forma-se uma pequena multidão à sua volta, admirando a obra em germinação. É arte em criação, e a arte respeita-se e aplaude-se.
Agora reparem num fotógrafo. Não tem o respeito nem a admiração que o estudante de belas artes ou arquitectura merecem. Ninguém vai querer parar junto dele observando-o, nem muito menos oferecer-lhe dinheiro. Os únicos grupos que se poderão formar à sua volta são os de pessoas ultrajadas por ter ousado fotografar no momento em que estas iam a caminhar na rua, ameaçando-o com a intervenção da autoridade policial. A menos que seja um turista ou estiver a fotografar monumentos que já toda a gente viu em fotografias, o fotógrafo é olhado como um intruso, um canalha que está ali para devassar a privacidade das pessoas. Ou então um mercenário a soldo de uma qualquer revista sensacionalista, ou uma espécie de espião; ou talvez ou um pervertido cujos intuitos são suspeitos e que deve, na dúvida, ser impedido de fotografar. É até, prima facie, merecedor de bastonada quando ousa fazer aquilo que o jornal lhe paga para fazer. De pouco importa qual o propósito com que esse fotógrafo está a usar a câmara: o medo e a psicose em que as pessoas vivem nos dias que correm leva-as a suspeitar dos propósitos do fotógrafo.
Além do episódio que narrei no texto mais lido de sempre deste blogue, que aconteceu na estação do metro da Trindade, já passei por outra circunstância profundamente desagradável: por altura do Carnaval montei o tripé junto a um carrossel, de maneira a fotografá-lo com um efeito de arrastamento, criando a ilusão de uma velocidade vertiginosa. Quando estava a regular a exposição, um sujeito - aparentemente o dono do carrossel, ou empregado deste - proferiu qualquer coisa como olhe que ainda estraga a máquina. Não me deixei intimidar e respondi com toda a raiva que a ameaça (mal) velada me causou: «Não estrago, não!». Se me tivesse deixado acobardar e fosse embora, a rudeza da criatura teria vencido; se eu tivesse permanecido indiferente - o que qualquer pessoa educada tenderia a fazer -, o homenzinho iria tentar provocar um desacato. Depois de ter percebido que eu não tinha medo dele, deixou-me em paz. Ainda bem, porque as fotografias ficaram bastante satisfatórias - salvo aquelas em que o sujeito aparece no enquadramento, olhando-me com ar desafiador. Também já tive de acalmar uma discussão entre um amigo, que me acompanhava numa sessão fotográfica na baixa do Porto, e uma criatura que se achou ofendida por ter sido apanhada no enquadramento da Canon 1000D do meu amigo.
Esta é a realidade, e o confronto desta realidade com a dos artistas a que aludi no primeiro parágrafo tem que ver com o facto de a fotografia ser vista, pela generalidade do público, como tudo o que for concebível, mas nunca como uma arte. É um facto: para a esmagadora maioria das pessoas, a fotografia não é arte. É ilustração. Não merece respeito nem consideração: o fotógrafo é um potencial intruso disposto a roubar a imagem dos pobres transeuntes (como aqueles indígenas que entendiam que a fotografia lhes roubava a alma...) Quem devemos culpar por isto - as pessoas que reagem mal à fotografia? Não. Estas pessoas têm direitos e, felizmente, são cada vez mais conscientes - embora nem sempre bem informadas. A culpa desta desqualificação da fotografia, que a remeteu para a categoria da simples ilustração, tem que ver com o excesso de fotografias. Hoje qualquer pessoa fotografa, e muitos são os fotógrafos que vão longe demais. O exemplo mais evidente é o dos paparazzi - é um lugar-comum -, mas estes não são os únicos culpados. Aliás, mais culpados que os paparazzi são aqueles que lhes pagam. Há muitos outros fotógrafos que abusam e não conhecem os limites - ou, se os conhecem, transpõem-nos sem qualquer hesitação. A generalidade das pessoas tem, por tudo isto, o direito de se sentir saturada de fotografias e de fotógrafos. Reparem que não considero esta atitude meramente compreensível ou desculpável: considero-a legítima. Há verdadeiros tarados a fazer fotografia - ou, mais correctamente, a tirar fotografias - de pessoas (e em particular de crianças) com propósitos dúbios; e estas pessoas não têm qualquer possibilidade de distinguir o verdadeiro fotógrafo de rua, ou aquele que fotografa com fins artísticos, destes indivíduos. Não há nada que os distinga.
E como pode algo que toda a gente faz ser considerado arte? Como pode uma forma de criação que nos surge em painéis publicitários, nas páginas dos jornais e revistas, nos websites e nos blogues - numa palavra, que nos invade incessantemente -, ser considerada arte? A fotografia está de tal maneira banalizada que qualquer pretensão artística se torna risível.
E, contudo, não deixa de ser uma forma de expressão artística - pelo menos quando é essa a intenção do fotógrafo, e quando este tem a sensibilidade e o domínio técnico necessários. Simplesmente, a fotografia artística é um reduto marginal dentro dessa enorme categoria que é a fotografia. Um Ansel Adams é comparável, do ponto de vista da criação, a um John Constable, Cartier-Bresson é tão grande na sua arte como Monet na pintura. E há contemporâneos que seria injusto excluir da classificação de artistas apenas porque a fotografia está tão vulgarizada. O nosso João Silva, por exemplo. Ou Steve McCurry. Ou tantos outros. Aliás, se a fotografia devesse deixar de ser considerada uma arte por haver tantas fotografias e fotógrafos, porque não fazer o mesmo com a música? Deverá Mozart deixar de ser considerado um artista por causa dos Maroon 5? E, já agora, com a literatura: deve Eça de Queiroz ser removido do Panteão Nacional por causa da Margarida Rebelo Pinto? O mesmo pode ser dito em relação a qualquer outra arte: Tchékov não deixa de ser um dramaturgo por causa do Filipe La Féria, Sean Penn não se confunde com Chuck Norris. Estou convicto que as fotografias feitas hoje com propósitos artísticos sobreviverão à massificação; um dia olharemos para elas como hoje olhamos a obra de Robert Doisneau. Por vezes a proximidade temporal impede-nos de apreciar a verdadeira dimensão de uma fotografia, mas o tempo far-lhe-á justiça. Mesmo que apareça no Facebook, ou a ilustrar textos de blogues. Porque a arte - a verdadeira arte, não os pastiches que nos tentam impingir como sendo-o - tende para a eternidade e sobrevive às modas.
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