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Samuel Aranda (Prémio World Press Photo 2011) |
O requisito da
criação artística como critério de protecção dos direitos morais da fotografia deixou-me a reflectir acerca da diferença entre uma fotografia artística e uma fotografia
normal durante muito tempo. O que faz de uma fotografia uma fotografia artística? Quando é que ela se torna numa criação individual, e não num mero documento? A resposta não é fácil: por vezes vemos fotografias feitas com recurso a todas as técnicas fotográficas, mas sem alma; outras vezes vemos fotografias interessantes, mas que falham quando se trata de criar sensações; outras ainda são aquelas fotografias que, tendo um propósito meramente informativo, são contudo brilhantes. A fronteira entre a fotografia artística e a documental é por vezes ténue, e ainda mais difícil se torna apontar precisamente o que eleva uma imagem à categoria de arte.
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Henri Cartier-Bresson |
Penso que, antes de mais, o que distingue uma boa fotografia é a sua
originalidade. Note-se que esta originalidade não significa, necessariamente, que o objecto fotografado seja original: é possível fazer fotografias originais a partir de objectos que toda a gente já viu e outra tanta fotografou. Basta uma perspectiva diferente, uma composição interessante, um enquadramento mais dinâmico, para que a fotografia resulte e possa ser considerada original. Lembremo-nos que, segundo o grande Garry Winogrand, «tudo é fotografável». A questão é que consigamos encontrar um ângulo novo de ver as coisas, algo que interesse e que jogue com a mente de quem vê a fotografia. Aqui ajuda ter noções sólidas de composição e enquadramento: uma fotografia de um objecto tal como ele é, de frente ou de um ângulo demasiado óbvio, pode ser a coisa mais fastidiosa do mundo: é um documento, nada mais. Pode o seu tema ser importante ou esteticamente agradável, mas este facto não é suficiente para fazer a fotografia ascender à categoria de arte. Se quisermos usar um exemplo extremo, a diferença que vai de uma fotografia cujo objecto é demasiado óbvio e outra mais desafiadora para a inteligência de quem vê é a mesma que existe entre erotismo e pornografia: por vezes o mero vislumbre de uma porção de pele é mais estimulante do que a nudez frontal, porque desperta um processo intelectivo - a imaginação. É necessário jogar com os sentidos, e sobretudo com a inteligência e a subtileza de quem vê a fotografia. As fotografias com demasiado impacto visual de que hoje tanto se abusa, como aquelas que vemos carregadas de manipulação e muitas das que são feitas com a técnica HDRI, apenas perduram durante uns momentos; as que necessitam de ser interpretadas, que nos deixam a pensar qual seria a intenção do fotógrafo - o que ele nos quis dizer com a sua fotografia -, são aquelas que perduram. Para fornecer um exemplo óbvio, tomemos a
Derrière la Gare de Saint-Lazare: é uma fotografia que nos deixa a pensar e estimula a nossa imaginação - como é que o homenzinho foi ali parar?; que estava ele ali a fazer?; vai cair na poça de água?; vai molhar as calças?; teria encontrado um ponto onde pudesse
aterrar sem se molhar?
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Philippe Halsman |
Para que uma fotografia possa ser considerada uma criação artística, é necessário que ela traduza uma
intenção do fotógrafo, e que lhe esteja subjacente uma expressão artística. Tal como qualquer outra arte, não carece de uma mensagem explícita, nem de um propósito interventivo; se estes estiverem presentes, tanto melhor, mas a arte é, acima de tudo, uma representação externa do mundo interior do artista, ou, pelo menos, uma exteriorização da forma como este vê ou interpreta o mundo. É a expressão de uma ideia, de uma maneira de ser e de se relacionar com o objecto e com quem desfruta a criação artística. Ao longo dos últimos séculos, a arte evoluiu da descrição para a criação de sensações no espectador, e a fotografia acompanhou esta tendência que nos levou ao impressionismo e ao surrealismo. Lembremo-nos, por exemplo, do dadaísmo e de
Man Ray. A fotografia não tem de ser descritiva, mas deve criar uma ligação entre a imagem, o fotógrafo e o espectador.
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Garry Winogrand |
A técnica tem influência no processo artístico, mas de nada vale se o objecto for desinteressante ou banal. A técnica pode ser um poderoso auxiliar na transmissão da mensagem da fotografia, mas não se for usada para valorizar um motivo intrinsecamente desprovido de interesse. Técnicas como o arrastamento, o
bokeh ou rodar o zoom no momento do disparo, entre outras, contribuem para tornar a fotografia mais dinâmica e comunicativa. Do mesmo modo, jogar com a medição pontual para criar motivos fortemente contrastados também resulta, tal como o equilíbrio dos brancos pode ser usado para saturar ou dessaturar cores. E não devemos esquecer que a distância focal desempenha um papel importante: não apenas quando se trata de preencher o enquadramento, mas sobretudo pelas características que confere à imagem: as grande-angulares criam diagonais, conferindo tensão dinâmica às linhas verticais, enquanto as teleobjectivas comprimem a perspectiva, aproximando o plano de fundo do objecto. Não sou, sinceramente, daqueles que acreditam que uma fotografia pode ser
maravilhosa mesmo se feita com recurso a material inferior, ou com um domínio pobre da técnica: uma fotografia assim é uma fotografia desprovida do seu potencial criativo, e os casos de êxito nascem de um puro acaso. A técnica é tão importante na fotografia como na pintura ou na poesia, artes das quais é indissociável; ela contribui decisivamente para o conteúdo artístico da obra, pelo que não deve ser minorada nem desprezada. Por vezes é nela que reside a distinção entre a fotografia-documento e a fotografia-arte. A técnica, com efeito, ajuda a conferir expressão à fotografia e a afirmar a intenção do fotógrafo. Deve, porém, evitar-se o excesso da técnica, impedindo que esta se sobreponha à intenção fotográfica e à expressão artística.
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Edward Weston |
Acima de tudo, a boa fotografia é aquela que perdura, pelo seu significado, para além do impacto visual imediato. Como referi acima, a fotografia não tem de ter uma mensagem; não precisa de ser um manifesto para ser considerada arte. Mas deve causar uma impressão duradoura, deixar-nos a pensar nela e em qual a intenção do fotógrafo. Uma fotografia frívola, ou duma estética superficial, pode agradar aos sentidos, mas não provoca uma sensação que se prolongue no tempo, nem obriga a reflectir. Mesmo as cenas de rua mais triviais podem provocar as mais intensas reflexões.
É muito difícil, porque implica o uso de conceitos altamente subjectivos, definir uma fotografia - ou qualquer criação da mente humana - como arte, mas arrisco-me a dizer que é quando a imagem nos leva a abstrair do seu objecto e obriga a procurar significados para além deste que uma fotografia se cumpre enquanto criação artística. E esta é incindível do seu criador, pelo que o requisito da subjectividade - entendida aqui como uma emanação da mente do fotógrafo, com o seu modo de ver o mundo implícito na criação - me parece essencial para definir uma criação artística.
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