sábado, 14 de abril de 2012

Fotografia e reserva da intimidade da vida privada

No meu primeiro artigo acerca das questões jurídicas da fotografia abordei a questão do direito à imagem e expus o modo como a lei procura resolver o conflito entre o direito à imagem, um direito fundamental sancionado na Constituição da República Portuguesa e na lei ordinária, e o direito de fotografar, que se integra na liberdade de informação e expressão, bem como na de criação cultural, que também são bens jurídicos constitucionalmente protegidos. Vimos, nesse texto, que o conflito é largamente dirimido em favor do direito de fotografar quando a pessoa esteja em lugares públicos, quando seja uma figura pública ou quando haja uma intenção artística (ou cultural, se aceitarmos um conceito reducionista de cultura) subjacente à tirada da imagem. Tal não significa, porém, que qualquer fotografia de uma pessoa, mesmo que feita nessas condições, seja passível de divulgação, quer por comercialização, quer por exposição pública.
Há, desde logo, um limite previsto no artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil: a fotografia não pode ser divulgada sem o consentimento da pessoa, mesmo que feita num lugar público, se esta for ofensiva do seu bom nome ou, simplesmente, do seu decoro.
Há casos, com efeito, em que a fotografia de uma pessoa, mesmo que esta seja uma figura pública ou esteja num lugar público - e por mais artística que seja a intenção do fotógrafo -, pode ser ofensiva do bom nome e da reputação daquela pessoa. Em casos como estes, o fotógrafo deve abster-se de fotografá-la. Se o fizer, está a transpor a fronteira axiológica que separa o fotógrafo do paparazzo.
A nossa jurisprudência já se pronunciou a este propósito. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa n.º 7408/2005-6 é um modelo de clareza a este respeito:
1 – Uma reportagem, contendo uma mensagem alusiva aos malefícios do uso do álcool, em que se insere a fotografia do autor(*) para ilustrar o artigo, obtida e publicada sem o consentimento daquele, ofende o bom nome e reputação dessa pessoa. 2 – Tal como a liberdade de imprensa, também o direito de personalidade e o direito à imagem dão [são] direitos constitucionais. 3 – Em caso de conflito de direitos fundamentais, proceder-se-á a uma concordância dos mesmos, de tal modo que as restrições de um deles, em prol do outro, se reduzam ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 4 – Ainda que tenham presidido à reportagem interesses legítimos e públicos relacionados com o crescente consumo excessivo de álcool em Portugal, a liberdade de expressão dos meios de comunicação social em nada ficariam prejudicados se a fotografia do recorrente, que em nada se relaciona com a matéria da reportagem, não tivesse sido publicada nos termos em que o foi, sem autorização deste, em primeiro plano, com um título altamente agressivo. 5 – Nestas condições, a mencionada reportagem determina injustificada lesão dos direitos de personalidade, maxime do seu direito à imagem, ao bom nome e reputação. 6 – Provocando tal reportagem sofrimento e abalo, há lugar à fixação de indemnização por dano de natureza não patrimonial.
O que nos leva a uma outra limitação do direito de fotografar: o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 80.º do Código Civil). Este é outro direito de personalidade que importa ter em conta quando se fotografam pessoas, mesmo que em lugares públicos. É um direito constitucionalmente protegido (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e, como todos os direitos de personalidade, constitui uma obrigação passiva universal: é um direito erga omnes, estando todos os demais obrigados a respeitá-lo. O fotógrafo não pode fotografar em condições que violem este direito; a sua violação constitui-o em responsabilidade civil, incorrendo assim na obrigação de indemnizar o lesado.
Para definir a extensão deste direito de personalidade, socorramo-nos de um dos instrumentos mais usados pelos bons juristas (está para estes como as lentes prime para os fotógrafos): o Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela (Coimbra Editora, vol. I, p. 110). Dizem-nos os eméritos mestres de Coimbra que «Há (...) duas bases objectivas que este [o julgador] deve atender. Uma assenta na natureza do caso, dado que a divulgação dos factos da vida íntima da pessoa pode ofender em maior ou menor grau o seu decoro, respeitabilidade ou bom nome. Outra reporta-se à condição das pessoas, pois varia bastante, de acordo com ela, a reserva que as pessoas guardam ou exigem quanto à sua vida particular.»
Como se vê, este direito, embora sendo absoluto, tem a sua força jurídica condicionada pelo maior ou menor grau como cada pessoa valora a sua vida privada. Isto porque estamos perante um direito disponível: cada um comporta-se de acordo com a sua vontade e o seu comportamento social pode levar a uma renúncia implícita à reserva da vida privada.
Por outras palavras, há situações em que cada um renuncia, em maior ou menor medida, à sua privacidade. Para se entender esta afirmação, basta ter em mente a verdadeira voracidade que alguns manifestam por serem o alvo das atenções, não hesitando em abrir mão da sua privacidade e intimidade em troca de exposição pública. Pensemos, por ex., nos concorrentes dos reality shows e nos socialites. Nestes casos, as fronteiras da privacidade são muito longínquas - e, concomitantemente, é maior a liberdade do fotógrafo. Estes casos, contudo, são a excepção, e não a regra. Nem todos se chamam - se me desculparem o resvalamento para a banalidade do exemplo fácil - Paris Hilton ou José Castelo Branco.
Há, contudo, um limite que se sobrepõe a todas estas considerações: a necessidade de consentimento da pessoa fotografada. O consentimento presume-se, ou é tacitamente prestado - esta é uma opinião pessoal - quando alguém se expõe ao fotógrafo, como quando por ex. permite uma entrevista ou uma reportagem em sua casa, mas há que ter em conta que não pode existir uma limitação voluntária do direito à privacidade e intimidade que seja contrária à ordem pública (artigo 81.º do Código Civil). Mesmo na fotografia de rua, o fotógrafo deve abster-se de fotografar pessoas que, por alguma forma, manifestem a sua oposição a serem fotografadas. Este é um direito que têm e, como vimos, é merecedor de tutela constitucional e legal. O facto de a pessoa estar num lugar público não significa, necessariamente, que consinta em ser fotografada. Diria que o critério é o próprio enquadramento fotográfico: se essa pessoa surge como um mero elemento da paisagem urbana que o fotógrafo quis fotografar, o consentimento é dispensado por força do artigo 79.º, n.º 2, do Código Civil (desde que, como vimos, a privacidade e o decoro sejam respeitados); se, porém, é a própria pessoa o objecto principal da imagem, deve o fotógrafo - nem que seja por questões de cortesia e educação - assegurar-se que a pessoa consente em ser fotografada.
Uma última nota para dizer que, além da responsabilidade civil, o fotógrafo que viole a reserva da intimidade da vida privada se constitui também em responsabilidade criminal (artigo 192.º, n.º 1, al. b), do Código Penal). A fotografia de alguém em violação ao disposto nesta norma incriminadora é punida com pena de prisão até um ano ou multa até 240 dias. Esta punição demonstra claramente a reprovação social deste tipo de condutas. 
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(*) «Autor», neste contexto, é a pessoa que intentou a acção, enquanto parte processual, e não o autor da fotografia.

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