Anton Bruckner |
Como Jorge Sampaio poderia ter dito, há vida para além da fotografia. Claro que este é um blogue sobre fotografia, mas tal não me impede de escrever sobre assuntos fora deste tópico, porque tenho vários outros interesses na minha vida.
Um deles é a música. Ainda na Sexta-feira publiquei aqui um texto acerca de um vídeo musical - que, apesar de tudo, tem uma conexão estreita com a fotografia -, mas os meus interesses musicais transcendem as fronteiras da música popular (à falta de um adjectivo mais específico), seja ela pós-rock, pop, electrónica ou alternativa. Há o Jazz, também - sou um consumidor ávido de Thelonious Monk, John Coltrane, Sonny Rollins, Miles Davis, Wynton Kelly e outros gigantes do bebop -, mas a forma musical suprema é a clássica. «Clássica» é um adjectivo impróprio, porque é usado para definir uma época específica da música em que pontificaram compositores como Haydn e Mozart, mas é de longe preferível a «música erudita», que lhe confere um carácter exclusivista e, digamos, um pouco pedante. Dentro da música clássica há um compositor que venero acima de todos: o austríaco Josef Anton Bruckner Jr., ou, singelamente, Anton Bruckner. Ao escrever isto, sei que os idólatras de Beethoven se vão sentir escandalizados, mas este é o meu gosto. Beethoven é, evidentemente, o compositor mais importante de sempre, e o mais prolífico: apenas deixou por compor um concerto para violoncelo; mas a música de Beethoven é fortemente limitada pelo facto de não ter dominado a técnica da fuga, pelo que muitas das suas composições são variações sobre uma ou duas frases musicais, parecendo nunca abrir completamente as asas e voar rumo ao infinito, pairando permanentemente em círculos (embora, evidentemente, a uma altitude que muito poucos atingiram). Se acham que estou a ser ultrajante, ignorante ou desrespeitoso, ouçam o primeiro andamento da 2.ª Sonata para violoncelo - recomendo, em particular, a execução de Sviatoslav Richter e Mstislav Rostropovitch - e verão que isto é verdade. De resto, a 7.ª de Beethoven - em especial o Allegretto - é das minhas composições favoritas desde há muito tempo.
Em contrapartida, Anton Bruckner distinguiu-se como organista; a sua reputação era de tal ordem que, quando ele e César Franck se encontraram em Paris, este insistiu em beijar as mãos daquele que reputava ser um organista divino. As peças para órgão baseiam-se largamente na técnica da fuga, e Bruckner inspirou-se nas composições para este instrumento para escrever as suas sinfonias. E é também, como recentemente me confirmou o Sr. Carlos, baixo no Coro da Sé, o mestre da polifonia. A questão que Bruckner levanta, e o impede de ser considerado tão influente como um Beethoven, é a de ter escrito relativamente poucas composições: além das nove sinfonias - não por acaso tantas como as de Beethoven, que de resto Bruckner venerava -, escreveu o Te Deum, missas, motetes e um quarteto e um quinteto para cordas. E pouco mais, pelo menos do que está documentado.
Para a relativa impopularidade de Bruckner contribuíram também vários outros factores. Antes de mais, a sua personalidade. Bruckner era aquilo a que poderíamos chamar, sem insulto, um labrego - embora um labrego cheio de génio -, o que não o ajudou a conquistar fama numa Viena elegante, sofisticada e cosmopolita. (Bruckner nasceu em Ansfelden, no norte da Áustria, em 4 de Setembro de 1824, mas viveu em Viena durante a sua fase mais prolífica e até ao fim da sua vida.) E era um católico devoto e um celibatário, um homem de gostos simples e vida espartana - a sua forma de vestir despertava o sarcasmo dos vienenses -, o que o tornava deveras impopular. Sofreu, ao longo da maior parte da sua carreira, os escárnios de uma comunidade musical conservadora e refractária à evolução, que idolatrava Brahms e tinha como maior influência o crítico Eduard Hanslick. E a música de Bruckner, que na sua fase mais tardia e mais prolífica, em que avultam as nove sinfonias, recebeu a influência da obra de Richard Wagner, era demasiado incompreensível para a comunidade musical vienense. Bruckner podia ser um rústico, mas a sua música, salvo alguns apontamentos nos scherzi das suas sinfonias, era tudo menos rústica.
É preciso ter em mente que, nessa segunda metade do Século XIX, havia uma divisão profunda entre os amantes da tradição romântico-clássica, nascida com Beethoven e personificada por Johannes Brahms, e os seguidores da inovação do romântico tardio iniciada por Richard Wagner. Esta rivalidade, e o domínio destes dois compositores - que reduziam todos os outros a irrelevâncias -, levou a uma divisão profunda. Optar pelo lado de Wagner, como o fez Anton Bruckner, era anátema nessa sociedade conservadora e de mentes estreitas que era a de Viena, cidade onde estava o coração das artes no Século XIX.
Eugen Jochum |
De toda a obra sinfónica de Anton Bruckner, há sinfonias que ganham mais relevo que as outras. Eu tenho, para além de uma gravação da 9.ª Sinfonia por Harnoncourt com a Filarmónica de Viena (v. adiante), uma caixa de CDs com a integral das sinfonias de Bruckner, incluindo a Sinfonia «Zero» (Nullte), que Bruckner compôs mas rejeitou por a entender de qualidade insuficiente. À excepção da Nullte, as nove sinfonias dessa caixa de CDs são interpretadas pela Staatskapelle Dresden sob a direcção do magnífico Eugen Jochum. Não houve nenhum andamento das nove sinfonias que eu não tivesse escutado com atenção - mas não atribuo o mesmo valor a todas. A 2.ª, 3.ª, 5.ª, 7.ª, 8.ª e 9.ª são, de longe, as mais relevantes e importantes, e é nas três últimas que o génio de Anton Bruckner atinge toda a sua majestade. A 7.ª começa com uma das melodias mais belas que alguma vez foi composta, com o tema musical mais longo que Bruckner escreveu seguido de uma longa fuga (os andamentos das suas sinfonias duram entre quinze e vinte e oito minutos, conforme o maestro e a sua interpretação), fuga que culmina num tema inspirado na música sacra que é um dos momentos mais sublimes da música bruckneriana. O Adagio da 7.ª é um dos andamentos mais majestosos jamais compostos, e a interpretação de Eugen Jochum é, possivelmente, das melhores que foram gravadas, juntamente com a de Wilhelm Furtwängler. A 8.ª sinfonia é ainda melhor - o Scherzo e o Finale da 7.ª desequilibram um pouco a grandeza obtida com o Allegro Moderato e o Adagio -, sendo o Finale uma das composições mais poderosas e telúricas existentes - em particular o Gran Finale, em Dó Maior, que é de uma grandeza e poder incomparáveis.
Depois há a 9.ª, a sinfonia incompleta que Anton Bruckner não teve tempo de acabar - em parte pela sua preocupação obsessiva em rever as sinfonias anteriores. O primeiro andamento é uma peça que imagino ter sido um choque para a Viena brahmsiana e para Eduard Hanslick: prefigura as composições de Gustav Mahler e Richard Strauss. O Scherzo é também estranho, algo nunca ouvido até então, uma composição de uma energia e força sem quaisquer pontos de comparação. À medida que Bruckner ia avançando na idade, as suas composições tornavam-se mais fortes e telúricas, ancoradas à terra por percussões e contrabaixos enérgicos e com uma abundância de metais que lhes conferiam uma força enorme - e, em simultâneo, uma grandeza e elevação que são o produto de uma mente devota, impregnada de elevação divina e de temor a Deus. Mesmo um agnóstico como eu se vê compelido a reconhecer, nas sinfonias de Bruckner - mas também no Te Deum e nas missas, obviamente -, esta inspiração, este desejo incansável de glorificar Deus.
Esta última característica da produção sinfónica de Anton Bruckner é especialmente audível no Adagio da 9.ª Sinfonia. A Nona foi por Bruckner dedicada a Deus Todo-Poderoso, e o último andamento é a expressão dos sentimentos de Anton Bruckner diante da morte e da eternidade. Não tenho dúvidas - a despeito de não ser um religioso - em considerar que o Adagio da 9.ª Sinfonia de Bruckner é o momento maior da música sinfónica. O clímax deste andamento (aos 22m40s deste vídeo), que é antecedido por uma progressão ascendente que evoca a ascensão ao Paraíso, é um dos pontos mais altos, não da música clássica, mas de toda a cultura europeia, considerada no seu conjunto e em toda a sua história. É difícil descrever o que nos percorre quando se escuta todo aquele poder, aquela força tremenda, aquela beleza que nos deixa esmagados e comovidos. Nada, na música dita clássica, se compara a este clímax; diante dele, o Finale da 9.ª de Beethoven assume um carácter ligeiro, fácil e inexpressivo. Não me interpretem mal: a 9.ª de Beethoven deve orgulhar qualquer um por poder dizer que pertence à mesma espécie (a humana) que Ludwig van Beethoven - mas é aquela peça que estamos fartos de ouvir, interpretada por criancinhas com os seus pífaros desafinados e assassinada por qualquer agrupamento musical com pretensões eruditas. E é o hino da União Europeia, essa instituição cada vez mais odiosa. Uma verdadeira overdose que impede a minha apreciação plena. O Adagio da 9.ª de Bruckner, em contrapartida, é a obra-prima não reconhecida, condenada a ser conhecida e apreciada apenas por um núcleo mais ou menos restrito de pessoas com conhecimentos que vão para além das produções discográficas mais extensamente divulgadas.
As interpretações da 9.ª Sinfonia tendem a ser muito distintas em carácter; sendo uma sinfonia inacabada, foi editada por vários discípulos e estudiosos, existindo as edições de Ferdinand Löwe, Orel, Nowak e Benjamin Cohrs. E cada maestro parece ter os seus pontos de vista quanto ao ritmo - ou, se quisermos, a velocidade das interpretações. Hans Knappertsbusch segue a edição Löwe, considerada demasiado literal e pouco fiel às intenções de Bruckner; Eugen Jochum, brilhante em tudo o mais, tem interpretações algo inexpressivas do Scherzo e do Adagio da 9.ª Recomendo-o, contudo, para todas as outras sinfonias, em especial a 7.ª e a 8.ª Quanto à 9.ª, as melhores interpretações que conheço - e não conheço todas - são as de Günter Wand, Georg Tintner (um dia o mundo há-de prestar a devida homenagem a este grande maestro que, sendo judeu, foi um dos que melhor soube transmitir a religiosidade das sinfonias de Bruckner) e, sobretudo, Nikolaus Harnoncourt. Esta (editada pela RCA em CD e SACD e tocada pela Filarmónica de Viena) é uma interpretação moderna e poderosa que recomendo vivamente.
Por fim, não deixem de ler a biografia que Werner Wolff escreveu em 1942, com o título Anton Bruckner, Rustic Genius (que pode ser descarregada aqui). É um texto muito interessante que ajuda a compreender a obra de Bruckner enquanto emanação da pessoa de nome Josef Anton Bruckner Jr.
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